terça-feira, 12 de maio de 2015

A Guerra Civil. Álvaro Guerra. «… desculpe, Ti Rita, mas está na hora de ir aquecer os ‘cuses’ das minhas senhoras. Mais respeito, minha alevantada!, censura a Francisca. Uma xícara de café, Ti Rita... E deixe cá ver esse xale para secar aqui ao pé do fogo…»

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1828 – 1831. S. Miguel Arcanjo
«(…) Primeiro, tinham morto o marquês de Loulé. Depois, já nas cavalgadas entre Queluz e Lisboa, espantaram para uma nau inglesa o conde de Subserra, prenderam o Palmela, o Parati, e deram ao cacete em tudo o que se parecesse com atrevimento moderno e ideias lá de fora. Foi então que Raimundo, protegido do Subserra, para quem pintava um fresco, levou por tabela e denúncia uma sova em que participaram o José Veríssimo e o Sedevém, companheiros das montarias aos liberais chefiadas por Miguel em pessoa, de pampilho entalado na sela, boné de pala, casaca verde, calção e botas altas de tacão, à toureiro. Daquilo saíra o Raimundo com uma perna quebrada e mancando para o resto da vida. Raimundo, o pai Raimundo, como lhe chamava desde que titubeara os primeiros sons e separara dos saiões da mãe Rita os passos periclitantes... Para quem não tinha pai nem mãe foi o destino pródigo em providenciar um afecto tão desvelado e constante como o do pintor do bairro do Castelo, espremendo o talento nos frescos da Ajuda e nos retratos de fidalgos da melhor estirpe e fazenda que na capital haviam sobrado dos exércitos que espadeiravam os franceses de Massena e Soult, esses companheiros do capitão Villepin varado por uma bala inglesa na batalha do Vimeiro, de quem Filipe usara o nome, entremeado de Maldonado, que era o apelido da mãe infeliz que morrera do parto e do desgosto. Quem o visse, fincado à amurada da escuna Le Dragon, veria nele uma expressão de rebeldia e tristeza. Mas por baixo desses sentimentos esconde-se o amor que fica em terra, a resgatar, ainda que seja preciso mudar o mundo inteiro. É que o amor e o ódio são os gémeos mais parecidos que se acoitam na alma humana, aguilhoam por igual e igual calor espalham no sangue esquentado por destinos vários. Na alma de Filipe não há desesperança que os apague.
Rita Silva puxa pela corrente da sineta da porta de serviço da mansão dos senhores Almeidas, buscando na ombreira protecção para a chuva que recomeçou. Repontara o seu João quando ela tomara o caminho da Lapa, separando-se ele, que ia em demanda da tasca de Alfama onde passa o mais do tempo em jogos de cartas entremeados com púcaros de vinho. Que ainda lhe haviam de dar muitos trabalhos aqueles recadinhos de alcoviteira, dissera. A mãe ofendera-se, que não se desgraçasse ele nalguma briga de taberna. Com modos de amuo, viraram-se as costas, cada um para seu lado. Entreabre-se a porta, a mostrar a senhora Francisca cozinheira, de coifa e avental muito alvos, xale cruzado por cima dos vastos peitos. Que entre Ti Rita, que está toda ensopadinha. E demandam a cozinha imensa onde a Rita sempre imagina albergue para família numerosa, com seus tanques de pedra, a grande mesa de mármore, a chaminé que sobe em cone, quase cúpula de igreja, os cobres muito acendrados a brilharem nas paredes caiadas onde se cruzam as sombras dos ferros dos janelões rectangulares. O criado resmunga as boas tardes, sentado num banco a engraxar as botas altas do patrão, e a Maria, uma moçoila que ri por nada, criada de quartos, guincha-lhe simpatias despropositadas, pega nas asas da braseira com os carvões bem ateados e, delambida, abalando para os aposentos dos amos, desboca-se: desculpe, Ti Rita, mas está na hora de ir aquecer os cuses das minhas senhoras.
Mais respeito, minha alevantada!, censura a Francisca. Uma xícara de café, Ti Rita... E deixe cá ver esse xale para secar aqui ao pé do fogo, que vossemecê ainda me apanha algum sopro de peitorreira, a andar assim à chuva. Lá foram, enfim..., suspira a Rita. Venho agora de Belém onde fui despedi-los. A Francisca não se mostra compungida. Que Deus os ajude, que hão-de precisar, diz, de repelão, juntando uma censura. Quem os mandou andar abandoados com os hereges que querem mal ao senhor Miguel, que é um santinho dos pobres, devoto e defensor da santa religião?! E valente como só ele, acrescenta o criado, que, dando as botas por prontas, se retira com elas pela porta da copa. Se o vissem picar um touro como eu vi... Só então Rita Silva extrai da algibeira do avental um sobrescrito amarrotado. Passa-o para a mão da Francisca, que logo o faz desaparecer pela gola do vestido. Nenhum cuidado é de mais, que vão por aquela casa tratos e choros por via da teima da menina Margarida; falam em metê-la em convento, se não deixar a cisma pelo Filipe e não casar com o primo». In Álvaro Guerra, A Guerra Civil, Publicações dom Quixote, Biblioteca Nacional, Lisboa, 1993, ISBN 972-201-083-2.

Cortesia BN/PdQuixote/JDACT