Maravilhoso
Novo Mundo. Charleston, Junho de 1767
«Escutei os tambores muito antes
de poder vê-los. Os golpes ressoavam na boca do meu estômago como se eu também
estivesse oca. As cabeças voltavam-se e a gente ficava em silêncio olhando a
rua East Bay, que se estendia da estrutura em construção da nova alfândega até aos
jardins do White Point. O dia era caloroso inclusive para Charleston no mês de
Junho. Os melhores sitios estavam no dique, onde o ar circulava, mas aqui em baixo
era como cozer-se vivo. Naquele momento, era morosamente consciente dos
pescoços. Coloquei uma mão no meu e o percorri com os dedos. O pulso de minhas
artérias carótidas pulsava ao mesmo ritmo que os tambores e, ao respirar, o ar húmido
e quente obstruía minha garganta, afogando-me. Baixei a mão e respirei
profundamente. Foi um engano. O homem que tinha em frente não se banhou em
meses. Também havia vários meninos, estirando-se boquiabertos para olhar para a
rua enquanto os pais, ansiosos, chamavam-nos. A menina mais próxima a mim tinha
o pescoço como a parte branca de um caule de erva, elástico e suculento. Produziu-se
um estremecimento entre a multidão quando a procissão da forca apareceu ao
final da rua. Os tambores soaram mais forte. Onde está?, murmurou Fergus, esticando
o pescoço para poder ver. Sabia que teria que ter ido com ele! Tem que estar
aqui. Quis-me pôr nas pontas dos pés, mas não me pareceu digno para o momento.
Segui procurando em redor. Sempre podia localizar ao Jamie entre a multidão; a sua
cabeça e ombros se sobressaíam por cima da maioria dos homens e seu cabelo
reflectia a luz como um brilho de ouro avermelhado. Entretanto, não havia rasto
dele.
Primeiro apareceram as bandeiras,
ondulando sobre as cabeças da agitada multidão, com as insígnias de
Grã-Bretanha, da Real Colónia da Carolina do Sul e o escudo da família do lorde
governador da colónia. Logo chegaram os tambores, partindo de dois em dois e
alternando um golpe forte com outro mais amortecido. Era uma marcha lenta,
sombria e inexorável. Uma marcha fúnebre, assim chamavam àquela cadência em
particular, muito adequada para as circunstâncias. O resto dos ruídos ficavam
apagados pelo som dos tambores. A seguir partia o pelotão de casacas vermelhas,
no meio dos quais se encontravam os prisioneiros. Eram três, com as mãos atadas
por diante e unidos por uma cadeia que unia os pescoços com argolas de ferro. Esse
é Gavin Hayes? Parece doente, murmurei ao Fergus. Está bêbado. A voz suave
vinha das minhas costas; dei a volta rapidamente e descobri a Jamie com os
olhos cravados na deprimente procissão. A falta de equilíbrio do homenzinho
entorpecia o progresso da marcha; os seus tropeções obrigavam aos outros dois
homens encadeados com ele a ziguezaguear para não cair. A impressão que davam
era de três bêbados voltando para a taverna. Foste tu?, perguntei em voz baixa
para não chamar a atenção, embora poderia ter gritado e agitado os braços pois
ninguém tinha olhos mais que para a cena que se desenvolvia ante nós.
Pediu-me isso,respondeu. E foi o
melhor que pude fazer por ele. Brandy ou whisky?, perguntou Fergus. O homem é
escocês, pequeno Fergus. A voz do Jamie era tão tranquila como a expressão do
seu rosto, mas notei a tensão que ocultava. Uma eleição muito sábia. Com sorte,
nem sequer se dará conta quando o enforcarem, murmurou Fergus. O capitão da
guarda tinha o rosto avermelhado pelo sol e a fúria; brilhava entre o branco de
sua peruca e o metal da sua garganta. Gritou uma ordem enquanto os tambores
continuavam o seu sombrio rufo, e um soldado apressou-se a desencadear os
prisioneiros. Hayes foi levantado sem cerimónia alguma por dois soldados e a
procissão continuou mais ordenada. Quando chegaram à forca, um carro com uma mula
debaixo dos ramos de um grande carvalho. Ninguém ria. Não precisa olhar, sussurrou
Jamie. Retorna ao carro. Seu olhar estava cravado no Hayes, que se retorcia
sujeito pelos soldados enquanto olhava confundido. Quão último desejava era
olhar. Mas tampouco ia deixar que Jamie passasse sozinho por tudo aquilo.
Estava ali por causa do Gavin Hayes e eu estava por ele. Toquei-lhe a mão. Me
vou ficar.
Jamie ergueu-se, endireitando os
ombros. Deu um passo adiante para ser visível no meio da multidão. Se Hayes
ainda estava sóbrio para ver algo, quão último veria neste mundo seria o rosto
de um amigo. Podia ver, pois enquanto o subiam para o carro torcia o pescoço
com desespero. Gabhainn! A charaid!, gritou de repente Jamie. Os olhos
do Hayes o encontraram e deixou de lutar. Então os tambores começaram outra
vez, com rufos parecidos. O verdugo passou o laço pela cabeça calva e ajustou o
nó, colocando-o debaixo da orelha. O capitão da guarda permaneceu em sentido,
com o sabre levantado. De repente, o homem condenado endireitou-se. Fixou os
olhos no Jamie e abriu a boca como se fosse para falar. A espada brilhou com o
sol da manhã e os tambores detiveram-se com um rufo final. Olhei para Jamie;
tinha o rosto pálido e os olhos muito abertos. O corpo pendurava oscilando
ligeiramente como um prumo. Não tinha conhecido Gavin Hayes e não sentia dor
pessoal pela sua morte, mas alegrava-me que tivesse sido rápida». In Diana
Gabaldon, Tambores de Outono, 1996, Editora Rocco, 2008, ISBN
978-853-252-373-0.
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