1828
– 1831. S. Miguel Arcanjo
«(…)
Primeiro, tinham morto o marquês de Loulé. Depois, já nas cavalgadas entre
Queluz e Lisboa, espantaram para uma nau inglesa o conde de Subserra, prenderam
o Palmela, o Parati, e deram ao
cacete em tudo o que se parecesse com atrevimento moderno e ideias lá de fora.
Foi então que Raimundo, protegido do Subserra, para quem pintava um fresco,
levou por tabela e denúncia uma sova em que participaram o José Veríssimo e o
Sedevém, companheiros das montarias aos liberais chefiadas por Miguel em pessoa, de pampilho entalado
na sela, boné de pala, casaca verde, calção e botas altas de tacão, à toureiro.
Daquilo saíra o Raimundo com uma perna quebrada e mancando para o resto da
vida. Raimundo, o pai Raimundo, como lhe chamava desde que titubeara os
primeiros sons e separara dos saiões da mãe Rita os passos periclitantes...
Para quem não tinha pai nem mãe foi o destino pródigo em providenciar um afecto
tão desvelado e constante como o do pintor do bairro do Castelo, espremendo o
talento nos frescos da Ajuda e nos retratos de fidalgos da melhor estirpe e
fazenda que na capital haviam sobrado dos exércitos que espadeiravam os
franceses de Massena e Soult, esses companheiros do capitão Villepin varado por
uma bala inglesa na batalha do Vimeiro, de quem Filipe usara o nome, entremeado
de Maldonado, que era o apelido da mãe infeliz que morrera do parto e do
desgosto. Quem o visse, fincado à amurada da escuna Le Dragon, veria nele uma expressão de rebeldia e tristeza.
Mas por baixo desses sentimentos esconde-se o amor que fica em terra, a
resgatar, ainda que seja preciso mudar o mundo inteiro. É que o amor e o ódio
são os gémeos mais parecidos que se acoitam na alma humana, aguilhoam por igual
e igual calor espalham no sangue esquentado por destinos vários. Na alma de
Filipe não há desesperança que os apague.
Rita
Silva puxa pela corrente da sineta da porta de serviço da mansão dos senhores
Almeidas, buscando na ombreira protecção para a chuva que recomeçou. Repontara
o seu João quando ela tomara o caminho da Lapa, separando-se ele, que ia em
demanda da tasca de Alfama onde passa o mais do tempo em jogos de cartas
entremeados com púcaros de vinho. Que ainda lhe haviam de dar muitos trabalhos
aqueles recadinhos de alcoviteira, dissera. A mãe ofendera-se, que não se
desgraçasse ele nalguma briga de taberna. Com modos de amuo, viraram-se as
costas, cada um para seu lado. Entreabre-se a porta, a mostrar a senhora
Francisca cozinheira, de coifa e avental muito alvos, xale cruzado por cima dos
vastos peitos. Que entre Ti Rita, que está toda ensopadinha. E demandam a
cozinha imensa onde a Rita sempre imagina albergue para família numerosa, com
seus tanques de pedra, a grande mesa de mármore, a chaminé que sobe em cone,
quase cúpula de igreja, os cobres muito acendrados a brilharem nas paredes
caiadas onde se cruzam as sombras dos ferros dos janelões rectangulares. O
criado resmunga as boas tardes, sentado num banco a engraxar as botas altas do
patrão, e a Maria, uma moçoila que ri por nada, criada de quartos, guincha-lhe
simpatias despropositadas, pega nas asas da braseira com os carvões bem ateados
e, delambida, abalando para os aposentos dos amos, desboca-se: desculpe, Ti
Rita, mas está na hora de ir aquecer os cuses
das minhas senhoras.
Mais
respeito, minha alevantada!, censura a Francisca. Uma xícara de café, Ti
Rita... E deixe cá ver esse xale para secar aqui ao pé do fogo, que vossemecê
ainda me apanha algum sopro de peitorreira, a andar assim à chuva. Lá foram,
enfim..., suspira a Rita. Venho agora de Belém onde fui despedi-los. A
Francisca não se mostra compungida. Que Deus os ajude, que hão-de precisar,
diz, de repelão, juntando uma censura. Quem os mandou andar abandoados com os
hereges que querem mal ao senhor Miguel,
que é um santinho dos pobres, devoto e defensor da santa religião?! E valente
como só ele, acrescenta o criado, que, dando as botas por prontas, se retira com
elas pela porta da copa. Se o vissem picar um touro como eu vi... Só então Rita
Silva extrai da algibeira do avental um sobrescrito amarrotado. Passa-o para a
mão da Francisca, que logo o faz desaparecer pela gola do vestido. Nenhum
cuidado é de mais, que vão por aquela casa tratos e choros por via da teima da
menina Margarida; falam em metê-la em convento, se não deixar a cisma pelo
Filipe e não casar com o primo». In Álvaro Guerra, A Guerra Civil, Publicações
dom Quixote, Biblioteca Nacional, Lisboa, 1993, ISBN 972-201-083-2.
Cortesia
BN/PdQuixote/JDACT