«Os românticos não viajam realmente para
o passado, trazem o passado para o presente». In Eduardo Lourenço
«(…)
Testemunha silenciosa e comovida, ela acompanhou-me quando fui despedir-me do
mar, quando transportei até à beira das areias salgadas a incerteza de
reencontrar o passado liquefeito e tormentoso que talvez se parecesse com o dos
portugueses antigos, uma sempre incompleta pesquisa. Ia partir das minhas praias
no sentido inverso das caravelas, na direcção do mundo a quem uma vez tínhamos
dado outros mundos. Era essa, dizia-se, a direcção do futuro e eu avançava para
lá, embora soubesse que é no futuro que a morte espreita na sua infinita
paciência. No jardimargem da minha despedida, afaguei com o olhar esse inverno
de barcos varados nas ruas que desembocavam no mar, proas respeitosamente
apontadas a perigos conhecidos. Homens e gaivotas em terra, sabendo de
temporais e peixes. Mulheres de negro, presságios, vigílias em olhos antigos. E
um risco de areia ameaçada. E a vida, de costas viradas para a terra, deitando
contas ao mar. O sal curtira todas as mãos e todo o saber estava temperado de
ansiedade e esperança. No mar de cada um, a ideia da última onda e a memória de
todas as outras. Despedia-me do etemo regresso, sem nada conhecer desse gesto
definitivo, sempre haverá quem venha varar o bote e deixar-lhe a proa apontada
à viagem.
Espero
alguns meses para prolongar o adeus. E começo a aprender que não se esgota
nunca o passado de que nos separamos onde, como dizia Pascoaes, se pressente o infinito constelado de
lágrimas. Marília partilha este limbo, desde que saímos da revolução, ela
pela porta do coração, eu pela porta da razão, ambos órfãos das nossas ilusões,
as minhas de morte natural, as dela de morte violenta. Mas ela acredita na
ressurreição e eu não. Assim nos dilaceramos semanas a fio, sob o mesmo tecto provisório
da Avenida de Roma, eu fazendo lentamente as malas, perante os olhos acusadores
e inquietos, rodeados de rugazinhas, de Marília mimando conspirações e
solidariedades internacionalistas, na pele da actiz Vera Rios ensaiando uma Mãe
Coragem que não chegará à cena. Cinicamente não quero abusar da minha boa acção.
Se nos enfrentamos, também na cama onde embalamos uma espécie de amor furioso,
é porque o futuro nos dá a dimensão comum de uma deixa de Cirano de Bergerac, mourir n'est rien. Ce n'est qu'achever de
naître. Portanto: para cada um sua vida. Isto é, seu nascimento
inacabado. Também eu queria fugir, se... Isto não é bem uma fuga. Parto antes
que me façam entender que não tenho lugar na nova ordem. Foges da ordem que ajudaste
a instaurar, protesta ela. Foste um inimigo da revolução. Agora, é a tua ordem.
Não é minha. Mas é a menos má para quem assistiu aos incontáveis funerais da
esperança». In Álvaro Guerra, Crimes Imperfeitos, Edições o Jornal, colecção Dias
de Prosa, 1990, Depósito legal nº 40709.
Cortesia
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