domingo, 17 de maio de 2015

El rei João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «Morreu em dias. Um frémito de horror percorreu a corte. Falou-se de veneno, de peçonha. Bem sei que se fala sempre quando os físicos não atinam com a doença […] como a medicina e a peçonha podem viver de mãos dadas»

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O Primeiro Voo do Falcão
«(…) O Infante Fernando jurou três vezes e beijou a pequenina mão do seu senhor que naquele instante dormia pacificamente no colo quente da ama. Depois, o que é normal, fartou-se de berrar e barafustar por ter de suportar aquele corrupio de gente solene a discursar e a beijar-lhe a mão, o que deve ter sido calamitoso para todos os ouvidos e para ele próprio porque ainda era muito cedo para conter a sabedoria que em homem soube manifestar de nunca com os inimigos, pretensos ou verdadeiros, ou com qualquer pessoa que fosse de seu contacto particular ou familiar (e até aí foi sempre prudente) traduzir o seu recôndito pensamento sem antes meditar profundamente nos prós e nos contras da sua sinceridade. Penso mesmo que, com excepção de dona Ana no momento mais intenso do amor que os uniu, ou da irmã, esse ser de exclusiva pureza que ele adorou, dos filhos e talvez também da mulher, a rainha, no início da sua relação ou nos instantes de infortúnio, de dor que ambos suportaram, ou ainda de Antão Faria e do esperto e gorducho Resende, mais ninguém penetrou aquela mente labiríntica. Foi o jovem Falcão então em Maio baptizado o primeiro rei de Portugal sem validos, confidentes ou íntimos, Rei sem direito nem avesso como ele mesmo afirmava, e por isso mesmo o mais solitário dos homens. Mas lá chegaremos.
A rainha conseguira, pelo preço da maternidade e pelo amor do marido, o milagre: o rei perdoaria aos inimigos partidários do tio e sogro pois nunca tinham sido réus de traição à pátria, ao Rei: O Infante ficava ilibado para sempre das acusações feitas. E os ossos do filho de João e de dona Filipa, a Inglesa, foram transportados, com as honras devidas à sua casta e nascimento, para o túmulo do sítio da Batalha, no Mosteiro que o pai construíra para cumprimento da promessa feita antes de Aljubarrota, e arrancados assim a Santo Elói, em Lisboa. Os filhos não estavam presentes, com excepção da dona Filipa e da rainha. Pedro também, embora em Castela, não teve autorização para vir. O velho duque de Bragança brandia, cheio de ódio, o documento que extorquira ao jovem rei nos momentos difíceis da confrontação entre um tio considerado rebelde e um rei inexperiente e ferido, e em que este jurara não permitir mais que o filho mais velho do Infante e condestável do reino pusesse os pés em território português... Toda a corte vestida com panos roxos acompanhou o préstito, menos o velho Bragança e seu filho Fernando. Não se lhes podia censurar a falta. Eram coerentes com o ódio ressentido e o passado... O seu passado.
O ano acabaria tristemente, no entanto. Dona Isabel, como os mais chegados na corte, mirava a grande nave, as ogivas, a bela obra de arquitectura que fora construída na antiga quinta do Pinhal a par da Carvoeira e que pertencera a um tal Egas Coelho, rodeada de pomares e vergéis, e que só contivera os túmulos do fundador e de sua mulher vinte e um anos antes, e rezava pelo pai e para que o panteão da Casa de Aviz não contivesse, tão brevemente, os ossos dos seus familiares queridos. O marido, a mãe, os filhos ... Talvez nem tivesse, nesse instante de vitória, orado por si própria! Afonso dera ordens e já providenciara para o alargamento do edifício e o acabamento de obras iniciadas pelo monarca Duarte I mas isso, mal a pobre dona Isabel adivinhava, só teria corpo após a sua morte. Por enquanto ainda mestre Martim Vasques que, de luto, estava presente, trabalhava no projecto concebido por Duarte I. E ainda trabalharia cerca de três anos pois após a sua morte é que Afonso contratou mestre Fernão Évora. Para Évora seguia, depois das solenes exéquias, a corte e por aí e arredores, durante meses, estacionou. O rei caçava, divertia-se, despachava os negócios públicos e, percorrido já pelo sonho africano, entretinha-se muitas vezes em longos diálogos com o tio Henrique ou seus emissários... Dona Isabel, embora sempre frágil, durante esses meses não acusou qualquer ameaço da doença, de qualquer doença. Depois, em fins de Novembro, adoeceu. De um dia para o outro. O fluxo de sangue que, mais tarde, vitimaria o filho, começou e não parou mais. Morreu em dias. Um frémito de horror percorreu a corte. Falou-se de veneno, de peçonha. Bem sei que se fala sempre quando os físicos não atinam com a doença mas eu vivi no meio deles e hoje sei melhor do que ninguém como a medicina e a peçonha podem viver de mãos dadas. Dona Isabel foi casada oito anos e morria com vinte e três. Afonso, agarrado às roupas do leito desfeito, chorou até à exaustão. Depois conformou-se. Aparentemente. Não mais, não mais. Não mais ninguém, nenhuma mulher. Agora restava-lhe a cruzada contra o infiel, a fé em Cristo, defensor da Cruz e, logo que o filho atingisse a idade da razão, deixar-lhe o peso dos encargos de Estado e recolher-se a um mosteiro. A jovem e infeliz rainha que talvez tenha sofrido a vingança dos inimigos do pai, recolheu ao seu túmulo». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.

Cortesia de EPresença/JDACT