Memórias
«No
dia em que nasci, os meus pais discutiram por minha causa. Faltavam cinco para
a meia-noite, afirmava peremptoriamente a minha mãe. Era meia-noite e cinco,
rectificou o meu pai. Bem sabes que o meu relógio nunca se adianta. Tudo isto
porque nasci por volta da meia-noite, mais minuto menos minuto, conforme os
diferentes relógios da casa. Conclusão: meu pai, que se dizia ateu, decidiu que
eu nascera aos cinco minutos de 9 de Dezembro. Minha mãe, católica praticante,
afirmava que eu nascera nos últimos cinco minutos do dia 8, dia de N. S. da
Conceição. Assim, para tudo o que é oficial, passaporte, B. I., etc., nasci a
9. Para a minha família, porém, para os amigos, para a festinha de anos, para
as prendas, para o arroz-doce e leite-creme polvilhados com canela, nasci a 8,
e assim tem sido sempre, e assim será até ao fim. Surpreendi-me agora a sorrir.
Se lá onde estão podem ver o que se passa cá em baixo, a querela continua. Bem
sabes que o meu Omega nunca se
engana. Ao que a minha mãe responde: O dia oito é, um dia mais bonito, o dia da
N. S., Padroeira de Portugal.
E
vejo-a muito feliz, com as flores, as prendas, as velas, a fita vermelha, com
que, a muito custo, conseguiram prender-me os cabelos rebeldes. Há pessoas que
se lembram de coisas que lhes aconteceram aos quatro e até três anos de idade.
Não é o meu caso; por mais que pense, que force a memória, só me lembro de
coisas vagas, de frases soltas que parecem sem sentido e, mesmo assim, pelas
minhas contas, nada antes dos meus cinco anos. Lembro-me, por exemplo, de estar
no campo sentada debaixo de uma árvore e de ouvir gritar: fujam, fujam, anda aí
um touro tresmalhado! Uma vez entrei de mão dada com a minha tia Castelo num lugar
onde havia bolos de muitas cores, uma pastelaria, com certeza. Tem violetas?,
perguntou a minha tia. Ah!, como me lembro bem do som das patas dos cavalos, no
chão empedrado da cocheira, quando havia visitas e eu dormia numa cama de chão,
na sala. Sempre que havia trovoadas, íamos todos para cima da cama da minha
bisavó, embrulhados em cobertores de papa. A minha ama gritava: Santa Bárbara,
valei-nos! Valei-nos, Santa Bárbara!
Uma
vez a minha mãe, que era míope, tentava ler o letreiro de um eléctrico. Eu
soletrei: Rossio. Estupefacta, a minha mãe perguntou-me: tu sabes ler?! Mas eu
não sabia, sabia só juntar algumas letras, graças à costureira Jacinta, graças
sobretudo a uns cubos que me tinham dado em letras encarnadas e azuis. Longe,
mais longe, nos confins da memória, a Carolina a gritar: um lobisomem! Um
lobisomem! Arrastada pelos braços, aterrada, estive dois dias sem poder falar.
A primeira recordação nítida, sem aquela espécie de nevoeiro que envolvia as
outras, deve ser dos meus cinco anos e meio, data confirmada pela família: Eu
tinha febre e o médico mandou-me tomar quinino. Estava então a passar férias no
campo, para os lados de Belas ou do Cacém, com a minha tia Castelo, que foi à
botica aviar a receita. O quinino vinha embrulhado em papel de seda, papel de
mortalha, e devia engolir-se assim mesmo, com papel e tudo. Mas a minha tia não
sabia, deitou fora o papelinho e deu-me o quinino numa colher de chá. Horror!
Não houve chá nem açúcar nem rebuçados que me valessem! Aquele pó era tão horrivelmente
amargo que ainda hoje o sinto na língua e nas gengivas cada vez que oiço a
palavra quinino. Todas as pequenas coisas de que acima falo me pareciam então
carregadas de mistério.
Mais
tarde compreendi, com pena, que tudo era simples e natural: o toiro fugira da
manada e o campino andava a procurá-lo; as violetas que a minha tia Castelo
queria eram violetas cristalizadas, guloseima muito apreciada no princípio do
século; o lobisomem era a sombra de um cipreste agitado pelo vento, que
assustara uma pobre criatura boçal: só não me desiludiu nunca o bater das patas
dos cavalos no chão empedrado da cocheira e o cheiro a palha fresca e a feno
que passava pelas frinchas das velhas tábuas do sobrado da sala». In Fernanda
de Castro, Ao Fim da Memória (1906-1939), Editorial Verbo, Lisboa, 1988,
Depósito legal nº 21636.
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