Dinastia
«Procurando
bem, sob a folhagem da árvore, interrogando as rugosidades do tronco, os caprichos
da irregularidade vegetal, os nós endurecidos pelo tempo, acabamos por achar o
ramo de onde derivámos com uma bossa especial, um elo, um nexo, uma espécie de
paixão sem objecto que, mais tarde, nos dirige os passos por caminhos repetidos
e reconhecidos, sempre em busca duma novidade que coincida com algum sonho que
há muito nos maravilhou. A afición
aos toiros é também, com muita frequência, uma coisa de família, um caso de
dinastia, um entroncar na memória herdada ou em alguma vivência que cedo nos
moldou as contorções da nossa diferença de ramo nascido duma seiva premeditada.
Ocorreu-me este devaneio ao ler um livro de Jorge Semprun em que ele se despede
para sempre do pseudónimo de Federico Sanchez, que usava na clandestinidade,
quando se arriscava na Madrid franquista a conspirar as promessas traídas do
futuro radioso. Fora dessa esfera hermética cujo rolar era impulsionado de Moscovo
pelo camarada Suslov, Jorge Semprun, aliás Federico Sanchez, frequentava o oásis
do bar do Palace, quando vinha
expor-se aos perigos madrilenos, nos finais dos anos 50. Os seus companheiros
ali eram os Dominguín e os Ordoñez e, fortuitamente, o já decadente Ernesto do Dangerous Summer, Ernest Hemingway de sua
imperecível graça. Nos perigosos e episódicos regressos às raízes, Semprun não
renegava quanto decidira do seu destino de escritor e quanto se submetia ao seu
atavismo de espanhol. Dos convívios com o malogrado Domingo Dominguín no bar do
Palace, lembro que este o apresentara
a Hemingway como sociólogo, ao que Semprun acrescentara uma precisão: a
definição irónica que José Bergamín dava à sociologia, una ciencia vaga, sin domicilio conocido.
É
nesta perspectiva diletante que as minhas lucubrações se desenrolam, ao
pretender lembrar aqui o peso das dinastias no que à tauromaquia diz respeito.
Os Dominguín e os Ordoñez com quem privava Semprun nas aventuras roubadas à clandestinidade
são óbvios exemplos do que avancei em matéria dinástica, segundo (ou primeiro?)
sentido da expressão sangre torera. Não vou, de forma
alguma, esgotar este filão inesgotável. Mas tão-só recordar que Juan Belmonte
ensombrou com o seu génio a descendência; que Joselito vinha de outro passado e
era parte duma dinastia. E que dizer dos Bienvenida, esse clã dirigido com mão
autoritária pelo Papa Negro? E
os de Manolete? E os Litri? Poucos serão os que
andam nos toiros que não tenham lá para trás, se bem buscarmos até aos confins
da memória, a sombra dum bandarilheiro, dum novilheiro sem futuro, dum torillero,
dum maioral, dum empresário.
Nos
domínios dessa ciencia vaga, sin domicilio
conocido, a sociologia segundo Bergamín, seria talvez possível
construirmos uma teoria de temperos freudianos, em que todas as minhas contradições
conduzissem a um pai aficionado, arruinado por essa paixão sem objecto que me legou
sem consulta prévia. No jogo da causalidade, do silogismo dialéctico à
dialéctica silogística, chegaria fatalmente uma conclusão de divã psiquiátrico
(se é que conclusões existem), tão abrangente que poderia ir da última fila do sol
à barreira de sombra. Olho a escada
social com a mais olímpica das indiferenças, embora a veja escorregadia e
traiçoeira, de degraus polidos pela memória, boleados por uma ironia sempre
pronta a desmascarar-se numa ou outra imagem do passado. Assim, encontrar
dinastias de toureiros nos bares dos hotéis não é um mero acaso, nem um capricho,
nem uma aposta, pode ser também parte duma dinastia». In Álvaro Guerra, Esboços para
uma Tauromaquia, Publicações dom Quixote, Lisboa, 1994, Biblioteca Nacional, ISBN
972-201-177-4.
Cortesia
de PQuixote/JDACT