«Kellyanne
abriu a porta do carro e enfiou-se no meu quarto. Trazia o rosto esbaforido e
pálido, todo franzido. Mal entrou, disse: Ashmol! O Pobby e a Dingan estão
talvez mortos. Foi assim que ela disse. Ainda bem, disse eu. Talvez agora
comeces a crescer e deixes de ser assim chalada. As lágrimas começaram a
correr-lhe pelas faces. Mas isso não me fazia ter nenhuma pena dela, e vocês
também não teriam se tivessem crescido com Pobby e Dingan. O Pobby e a Dingan
não estão mortos, disse, disfarçando a fúria com uma golada da lata de Mello
Yello. Nem nunca existiram. O que nunca existiu não pode morrer. Topas? Kellyanne
fixou-me por entre as lágrimas com o mesmo olhar de quando eu tinha batido com
a porta da carrinha na cara de Dingan ou daquela vez em que eu tinha pisado o
sítio onde ela dizia que Pobby estava sentado e dei socos e pontapés no ar onde
era a cabeça dele para mostrar a Kellyanne que Pobby não passava de uma ficção
saída da sua imaginação. Já perdi a conta do número de vezes que me sentei à
mesa a dizer: mamã, por que tem de pôr lugares para o Pobby e a Dingan? Nem
sequer são reais. E também lhes punha comida nos pratos. Dizia que faziam menos
barulho e se portavam melhor do que eu e que bem mereciam o que comiam. Mas não
são lá muito conversadores, respondia eu. Outras vezes em que Kellyanne teimava
que Pobby e Dingan eram reais, limitava-me a ficar ali sentado a dizer Não
são. Não são. Não são, até ela se chatear de repetir São.
São. São, e sair a correr aos guinchos com as mãos a tapar os ouvidos.
E houve muitas vezes em que me apeteceu matar Pobby e Dingan, não me importo de
o dizer. O meu pai voltava das minas de opala coberto de poeira, a barba como o
traseiro de um cão que tivesse caga… na cauda. Estava sempre a dizer: Ashmol,
hoje senti-a! Amanhã chegamos à opala, meu rapaz, e vamos ser milionários à
certa! Estou mesmo a ver aquelas lindinhas ali enfiadas nas galerias, mesmo a
olhar para mim. A observar-me. À espera. Vermelhas e pretas, Ashmol, aposto o
que quiseres! Contam para aí que o Lucky Jess sacou uma pedra de um milhão de
dólares e o fóssil de um dente de mamute com um raio de sol dentro. Andamos
perto, pá. Pertinho. Ali naquele terreno há de certeza qualquer coisa com o
nome Williamson escrito! A sério?. O entusiasmo dele acabava sempre por me
contagiar. Começava a sentir um formigueiro a descer-me pelo pescoço e ficava
ali sentado com as orelhas arrebitadas como as de um perdigueiro, a língua
pendente, fito nos olhos que lhe giravam nas órbitas. Eram uns olhos estranhos,
azuis e verdes e havia neles um cintilar de ouro. Olhos de opala, disse uma vez
a minha mãe com um suspiro, só que um bocadinho mais fáceis de descobrir.
Pois
enquanto o meu pai cirandava pelo pátio a distrair-se um bocado aos goles numa V.
B. , Kellyanne era capaz de dizer: papá, tem cuidado! Quase pisaste o Pobby com
os teus pés grandes! Olha por onde andas! Mas o papá estava demasiado
entusiasmado para reagir de outro modo que não fosse dizer: Ah, desculpa, princesa.
Pisei os teus amigos faz-de-conta? O papá era assim. Eu e ele nunca levámos Pobby
e Dingan minimamente a sério. Mas havia quem levasse. O género de pessoas mais
velhas e indulgentes de Lightning Ridge tinham como que adoptado Pobby e
Dingan. Tinham deixado completamente de lançar a Kellyanne aqueles olhares
espantados e de a picar com ditos sobre eles. Agora quando ela descia Opal
Street, alguns velhotes detinham-se e gritavam: bom dia, Kellyanne. Bom dia, Pobby.
Como está hoje a menina Dingan? Era de dar vontade de vomitar o chão todo.
Lightning Ridge estava cheia de idiotas chapados como já estão a ver. Era como
se o sol lhes tivesse queimado os miolos. Claro que eu era tão marado do garimpo
como qualquer outro miúdo, mas não era tão pirado que me pusesse a falar com
amigos imaginários, deixem-me que vos diga. Mas certa vez Ronnie Hope permitiu
a Kellyanne inscrever Dingan no concurso da Princesa Opala por Kellyanne estar
com gripe. Não estou a brincar. E o júri atribuiu a Dingan o terceiro lugar. E
Nils O'Reiordan do jornal foi lá e tirou fotografias de Kellyanne com o braço
por cima do ombro invisível de Dingan e depois fingiu que fazia perguntas a Dingan
e não sei que mais. Uma coisa embaraçosa. Quando saiu o jornal trazia uma
fotografia de Kellyanne com uma coroazinha de prata em cima dos cabelos loiros
compridos e por baixo havia uma frase a dizer: duas Princesas Opala, Kellyanne Williamson (de oito anos) e a sua amiga
invisível Dingan que ganhou o terceiro prémio no concurso da Príncesa Opala
deste ano. Além disso, sempre que íamos ao Khan's, a sra. Schwartz estendia
três chupas à minha irmã e dizia: toma, Kellyanne. Um para ti, um para o
Pobby e um para a Dingan. Estão todos muito bonitos. Toda a gente conhecia toda
a gente em Lightning Ridge. E até havia pessoas que conheciam ninguém, ao que
parece. Pobby e Dingan estavam mesmo calhados para esta vilória». In Ben
Rice, Pobby e Dingan, tradução de José Lima, Publicações dom Quixote, Lisboa,
2000/2001, ISBN 972-201-949-X.
Cortesia
PQuixote/JDACT