Filippa
na Grande Guerra
21
de Setembro de 1917
«Corria
ofegante na aflição de chegar, sem saber aonde, perdida nos subterrâneos, nas
encruzilhadas a abrirem-se à sua frente, vertiginosas, cada vez mais perdida,
cada vez mais ofegante, tinha de chegar, tinha de chegar, um choque brusco
abalou as paredes, outro bombardeamento, a chuva de caliça caía-lhe na cabeça, tenho
de chegar, estão à minha espera... - Filippa! Fil! Filippa! Os abanões de Grace
libertavam-na do pesadelo do costume nos túneis do Boves. Não tinhas de sair,
Fil? São quase sete horas. Filippa levantou-se, ainda com a angústia colada à pele,
lavou a cara na bacia de loiça, ao canto da sala, e só depois sorriu à amiga: Santo
Deus, adormeci. Estava tão cansada que adormeci. O Miguel deve estar aflito com
a demora. Vai, que eu assino a folha. Obediente, Filippa foi buscar a biciclette e saiu do hospital para a
escuridão da noite. Apesar da peliça grossa, o frio penetrou-lhe no corpo como
se estivesse nua, que saudades do sol e do calor, odiava aquele clima horrível,
Setembro em Portugal era suave; aqui, a chuva e a humidade invadiam tudo,
contaminavam tudo, esfacelavam tudo, como uma lula monstruosa, e aquele
matraquear contínuo das armas ao longe que se calava às vezes dando lugar ao
silêncio tumular, que saudades da paz. Respirou fundo e procurou um pensamento
alegre para o marido, tal como fazia ao começar o trabalho junto dos doentes, o
sorriso era um bálsamo, um bálsamo precioso naqueles lugares onde se sorria tão
pouco. E o pensamento alegre surgiu-lhe na imagem da adorável sobrinha Maria
Rita, de caracóis ruivos, 21 de Setembro, dia dos seus 3 anos, como devem estar
contentes a festejar na quinta, será que fizeram a festa na quinta? Claro, o
avô exigira. Que sorte estarem lá todos, mesmo que haja zanga, podem dar-se ao
luxo de se zangarem, não correm o risco de morrer amanhã. Afluíram-lhe rugosas
as saudades dos filhos, que má mãe lhes saíra na rifa, deixá-los por uma guerra
que não era sua, uma guerra de morte, de podridão e lama, os filhos eram a
vida, se conseguir voltar, volto estéril
como os campos de batalha. Pedalava com perícia, adorava a sua biciclette, Brigitte ensinara-a e ela aprendera
com facilidade surpreendente, abençoada farda que lhe permitia movimentar as pernas,
a liberdade de movimentar as pernas era uma delícia, a liberdade do corpo era
uma delícia, o que ela tinha mudado nestes meses, que sorte ter encontrado
amigas tão sábias e já veteranas, que
sorte teres chegado só agora, diria Grace. Apesar do negrume da noite,
circulava segura pelo chão escorregadio das ruas, de tantas vezes fazer aquele caminho
sabia-o de cor, conhecia as ruínas, as enormes crateras na calçada,
habituara-se à mobilidade no escuro, a guerra obrigava a estar-se no mundo de
um modo diferente, ou era o próprio mundo que se tornara outro?, o perigo vindo
do céu, das entranhas da terra, do mar, o perigo vindo de todos os lados, ela
aprendera a mover-se sem barulho por entre os perigos; ao contrário do
pesadelo, não se perdia nos túneis e muito menos nas ruelas da vila». In Luísa
Beltrão, Moscas nos Olhos, Filippa na Grande Guerra, Edição Glaciar, Lisboa,
2014, ISBN 978-989-877-600-6.
Cortesia
EGlaciar/JDACT