«Por
muito incongruente que possa parecer a quem não ande ao tento da importância
das alcovas, sejam elas sacramentadas, laicas ou irregulares, no bom funcionamento
das administrações públicas, o primeiro passo da extraordinária viagem de um
elefante à áustria que nos propusemos narrar foi dado nos reais aposentos da
corte portuguesa, mais ou menos à hora de ir para a cama. Registe-se já que não
é obra de simples acaso terem sido aqui utilizadas estas imprecisas palavras,
mais ou menos. Deste modo, dispensámo-nos, com assinalável elegância, de entrar
em pormenores de ordem física e fisiológica algo sórdidos, e quase sempre
ridículos, que, postos em pelota sobre o papel, ofenderiam o catolicismo estrito
de dom joão, o terceiro, rei de portugal e dos algarves, e de dona catarina de
áustria, sua esposa e futura avó daquele dom sebastião que irá a pelejar a alcácer-quibir
e lá morrerá ao primeiro assalto, ou ao segundo, embora não falte quem afirme
que se finou por doença na véspera da batalha. De sobrolho carregado, eis o que
o rei começou por dizer à rainha, Estou duvidando, senhora, Quê, meu senhor, O
presente que demos ao primo maximiliano, quando do seu casamento, há quatro
anos, sempre me pareceu indigno da sua linhagem e merecimentos, e agora que o
temos aqui tão perto, em valladolid, como regente de espanha, por assim dizer à
mão de semear, gostaria de lhe oferecer algo mais valioso, algo que desse nas
vistas, a vós que vos parece, senhora, Uma custódia estaria bem, senhor, tenho
observado que, talvez pela virtude conjunta do seu valor material com o seu
significado espiritual, uma custódia é sempre bem acolhida pelo obsequiado, A
nossa santa igreja não apreciaria tal liberalidade, ainda há-de ter presentes em
sua infalível memória as confessas simpatias do primo maximiliano pela reforma dos
protestantes luteranos, luteranos ou calvinistas, nunca soube ao certo, Vade
retro, satanás, nem em tal tinha pensado, exclamou a rainha, benzendo-se,
amanhã terei de me confessar à primeira hora, Porquê amanhã em particular,
senhora, se é vosso costume confessar-vos todos os dias, perguntou o rei, Pela
nefanda ideia que o inimigo me pôs nas cordas da voz, olhai que ainda sinto a
garganta queimada como se por ela tivesse roçado o bafo do inferno.
Habituado
aos exageros sensoriais da rainha, o rei encolheu os ombros e regressou à
espinhosa tarefa de descobrir um presente capaz de satisfazer o arquiduque
maximiliano de áustria. A rainha bisbilhava uma oração, principiara já outra,
quando de repente se interrompeu e quase gritou, Temos o salomão, Quê, perguntou
o rei, perplexo, sem perceber a intempestiva invocação ao rei de judá, Sim,
senhor, salomão, o elefante, E para que quero eu aqui o elefante, perguntou
o rei já algo abespinhado, Para o presente, senhor, para o presente de
casamento, respondeu a rainha, pondo-se de pé, eufórica, excitadíssima, Não é
presente de casamento, Dá o mesmo. O rei acenou com a cabeça lentamente três
vezes seguidas, fez uma pausa e acenou outras três vezes, ao fim das quais
admitiu, Parece-me uma ideia interessante, É mais do que interessante, é uma
ideia boa, é uma ideia excelente, retrucou a rainha com um gesto de impaciência,
quase de insubordinação, que não foi capaz de reprimir, há mais de dois anos
que esse animal veio da índia, e desde então não tem feito outra coisa que não
seja comer e dormir, a dorna da água sempre cheia, forragens aos montões, é
como se estivéssemos a sustentar uma besta à argola, e sem esperança de pago, O
pobre bicho não tem culpa, aqui não há trabalho que sirva para ele, a não ser
que o mandasse para os estaleiros do tejo a transportar tábuas, mas o coitado iria
padecer, porque a sua especialidade profissional são os troncos, que se ajeitam
melhor à tromba pela curvatura, Então que vá para viena, E como irá, perguntou
o rei, Ah, isso não é, da nossa conta, se o primo maximiliano passar a ser o dono,
ele que resolva, imagino que ainda continuará em valladolid, Não tenho notícia
em contrário, Claro que para valladolid o salomão terá de ir à pata, que boas
andadeiras tem, E para viena também, não terá outro remédio». In
José Saramago, A Viagem do Elefante, Círculo de Leitores, 2008, ISBN
978-972-424-375-7.
Cortesia
de CLeitores/JDACT