sexta-feira, 8 de maio de 2015

Os Mastins. Álvaro Guerra. «Portanto, o caminho empedrado, a ponte, a nora, o poço e a igreja são os incertos sinais da idade, não da Aldeia, mas do Homem no Lugar. Há, ainda, ou havia, aquele pilar torneado com coroas e brasões…»

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Os lugares. A aldeia
«A Aldeia que fica no fim do mundo, para lá de brenhas e penedos, com a serventia ruim de caminhos lamacentos ou empoeirados, mudando de traçado e piso ao ritmo das estações, a Aldeia, onde o tempo se mede por colheitas e gerações e o sol, a lua, os ventos, granizo, chuva, geada, neve, calor e frio determinam o trabalho e o pão dos homens que lá vivem, a Aldeia embiocada nas duras trevas de muitos anos iguais e somados, rastejando, espalmada e quase engolida pela terra de onde nasceu, é um lugar onde o tempo deixou as suas marcas mas onde a História nada fez que mereça ser contado, alguma gesta, tratado, batalha, revolução, morte de homem público, a não ser tudo aquilo que invisivelmente a mudou dentro das quatro paredes de cada casa, ou visivelmente alterou o seu aspecto irregular. E, no entanto, o poço aberto no local a que, talvez impropriamente, se possa chamar o centro do povoado e a nora parada, abandonada e esquecida como um esqueleto sem sepultura, datam de há largos séculos, aberto e engenhada pelos antigos donos do território, gentes de outros lugares para onde regressaram empurradas por novos invasores; e a ponte sobre o ribeiro bem como o caminho empedrado que se afunda na planície, para lá da charneca, o único transitável todo o ano nas sete léguas em redor, são obra de um ainda mais remoto povo que veio do Nascente, sulcando mares e transpondo montanhas, em legiões eriçadas de lanças. Povos que chegaram e partiram com séculos de intervalo, apagando com as patas dos cavalos e as rodas dos carros a marca dos que os precederam, modificando mais a fisionomia dos homens do que a dos lugares, criando novos povos e raças de tal modo mescladas e híbridas que as origens do sangue que hoje corre nas veias dos camponeses da Aldeia se perde nas conjecturas e no muito tempo decorrido. Os últimos a chegar trouxeram cruzes, muitas cruzes, primeiro apenas nos punhos das espadas, nos pendões, nas armaduras, cruzes que depois espalharam pelos caminhos, pelos muros, pelas casas, marcos da posse e signos da verdade nova. Se todos deixaram o traço indelével da sua passagem fizeram-no nos objectos, nas coisas que, por um acto de orgulho e inconformismo, construíram ou criaram em matérias tão resistentes e duráveis que nem os incêndios, as pestes, as fomes, os terramotos, as inundações, as guerras ou, simplesmente, os anos foram capazes de beliscar na sua orgulhosa e inconformada perenidade.
Portanto, o caminho empedrado, a ponte, a nora, o poço e a igreja são os incertos sinais da idade, não da Aldeia, mas do Homem no Lugar. Há, ainda, ou havia, aquele pilar torneado com coroas e brasões em baixos relevos arredondados, erecto, no meio do que foi ou pretendera ser um largo, praça pública ou terreiro, aquele pilar a sustentar coisa nenhuma com três degraus de pedra a contornar a base e quatro ferros cravados lá em cima formando uma cruz horizontal de pontas em gancho, o pelourinho, mas isso era antes da gente da cidade ter vindo para laboriosamente o transplantar lá para onde entenderam ser necessário. Agora, são só vinte e seis casas, colocadas um pouco ao acaso com uma rua por traço de união, uma espécie de rua, forum, ou propriedade comum, debicada por escassas e assustadas galinhas, domínio de rafeiros escanzelados e refilões, devassado por ágeis travessias de gatos mais selvagens que domésticos, a rua, a espécie de rua, com lama de palmo no Inverno e um espesso tapete de pó avermelhado no estio, testemunha, desde o limite que a memória alcança, as desatinadas cavalgadas dos senhores da caça, as ronceiras e repetidas viagens dos carros de bois carregados de uvas, ou de molhos de espigas, ou de mato, ou de esterco, as guisalhantes passagens dos grandes rebanhos senhoriais, os melancólicos e numerosos passos dos ranchos de alugados e o mais que, segundo as épocas, por lá tem que passar». In Álvaro Guerra, Os Mastins, Prelo Editora, Lisboa, 1967.

Cortesia de EPrelo/JDACT