Os
lugares. A aldeia
«A
Aldeia que fica no fim do mundo, para lá de brenhas e penedos, com a serventia
ruim de caminhos lamacentos ou empoeirados, mudando de traçado e piso ao ritmo
das estações, a Aldeia, onde o tempo se mede por colheitas e gerações e o sol,
a lua, os ventos, granizo, chuva, geada, neve, calor e frio determinam o trabalho
e o pão dos homens que lá vivem, a Aldeia embiocada nas duras trevas de muitos
anos iguais e somados, rastejando, espalmada e quase engolida pela terra de
onde nasceu, é um lugar onde o tempo deixou as suas marcas mas onde a História
nada fez que mereça ser contado, alguma gesta, tratado, batalha, revolução,
morte de homem público, a não ser tudo aquilo que invisivelmente a mudou dentro
das quatro paredes de cada casa, ou visivelmente alterou o seu aspecto irregular.
E, no entanto, o poço aberto no local a que, talvez impropriamente, se possa
chamar o centro do povoado e a nora parada, abandonada e esquecida como um
esqueleto sem sepultura, datam de há largos séculos, aberto e engenhada pelos
antigos donos do território, gentes de outros lugares para onde regressaram
empurradas por novos invasores; e a ponte sobre o ribeiro bem como o caminho
empedrado que se afunda na planície, para lá da charneca, o único transitável
todo o ano nas sete léguas em redor, são obra de um ainda mais remoto povo que
veio do Nascente, sulcando mares e transpondo montanhas, em legiões eriçadas de
lanças. Povos que chegaram e partiram com séculos de intervalo, apagando com as
patas dos cavalos e as rodas dos carros a marca dos que os precederam,
modificando mais a fisionomia dos homens do que a dos lugares, criando novos
povos e raças de tal modo mescladas e híbridas que as origens do sangue que
hoje corre nas veias dos camponeses da Aldeia se perde nas conjecturas e no
muito tempo decorrido. Os últimos a chegar trouxeram cruzes, muitas cruzes, primeiro
apenas nos punhos das espadas, nos pendões, nas armaduras, cruzes que depois
espalharam pelos caminhos, pelos muros, pelas casas, marcos da posse e signos
da verdade nova. Se todos deixaram o traço indelével da sua passagem fizeram-no
nos objectos, nas coisas que, por um acto de orgulho e inconformismo,
construíram ou criaram em matérias tão resistentes e duráveis que nem os
incêndios, as pestes, as fomes, os terramotos, as inundações, as guerras ou,
simplesmente, os anos foram capazes de beliscar na sua orgulhosa e inconformada
perenidade.
Portanto,
o caminho empedrado, a ponte, a nora, o poço e a igreja são os incertos sinais
da idade, não da Aldeia, mas do Homem no Lugar. Há, ainda, ou havia, aquele
pilar torneado com coroas e brasões em baixos relevos arredondados, erecto, no
meio do que foi ou pretendera ser um largo, praça pública ou terreiro, aquele pilar
a sustentar coisa nenhuma com três degraus de pedra a contornar a base e quatro
ferros cravados lá em cima formando uma cruz horizontal de pontas em gancho, o
pelourinho, mas isso era antes da gente da cidade ter vindo para laboriosamente
o transplantar lá para onde entenderam ser necessário. Agora, são só vinte e
seis casas, colocadas um pouco ao acaso com uma rua por traço de união, uma
espécie de rua, forum, ou
propriedade comum, debicada por escassas e assustadas galinhas, domínio de rafeiros
escanzelados e refilões, devassado por ágeis travessias de gatos mais selvagens
que domésticos, a rua, a espécie de rua, com lama de palmo no Inverno e um
espesso tapete de pó avermelhado no estio, testemunha, desde o limite que a
memória alcança, as desatinadas cavalgadas dos senhores da caça, as ronceiras e
repetidas viagens dos carros de bois carregados de uvas, ou de molhos de
espigas, ou de mato, ou de esterco, as guisalhantes passagens dos grandes
rebanhos senhoriais, os melancólicos e numerosos passos dos ranchos de alugados
e o mais que, segundo as épocas, por lá tem que passar». In Álvaro Guerra, Os Mastins,
Prelo Editora, Lisboa, 1967.
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