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Era por isso que, semana após semana, o jovem Mortimer recebia o barbeiro Ogle,
mesmo quando era preciso partir o gelo da água na bacia e a navalha lhe deixava
o rosto em sangue. Mas a sua atitude acabara por lhe trazer uma recompensa, já que
ao fim de alguns meses se apercebera de que aquele Ogle podia servir-lhe de
ligação com o exterior. O homem tinha um estranho carácter apesar de
ganancioso, podia ser afável, tinha uma posição subalterna que considerava
inferior ao seu mérito e a intriga proporcionava-lhe uma oportunidade de
vingança secreta e de adquirir, ao partilhar os segredos de grandes personagens,
uma certa importância a seus próprios olhos. O barão de Wigmore era sem dúvida
o homem mais nobre, ao mesmo tempo de nascença e de natureza, que alguma vez
conhecera. Além disso, é impossível não admirar um prisioneiro que insiste em
fazer a barba mesmo com um frio glacial! Assim, graças ao barbeiro, Mortimer
estabelecera um laço, ténue mas regular, com os seus partidários, e
particularmente com Adão Odeton, bispo de Hereford. Também pelo barbeiro, soubera
que o tenente da Torre, Gerardo Alspaye, podia ser conquistado para a sua
causa, e ainda com a sua ajuda começara a trabalhar num lento plano de evasão.
O bispo assegurara-lhe que seria libertado no Verão. Ora o Verão já chegara...
O
carcereiro espreitava de vez em quando através da vigia da porta, sem nenhuma
desconfiança especial, apenas por simples hábito profissional. Com uma escudela
de madeira sob o queixo, alguma vez voltaria a ver a fina bacia de prata
lavrada de que se servira em tempos?, o prisioneiro ouvia as frases de cortesia
que o barbeiro lhe dizia em voz bastante alta, para evitar suspeitas. O sol, o
Verão, o calor… Era curioso como o tempo estava sempre bom no dia de São Pedro...
Inclinando-se sobre a navalha, Ogle sussurrou: esteja pronto hoje à noite, lorde
Monimer. Este nem sequer estremeceu. Limitou-se a voltar os olhos cor de
sílex sob as sobrancelhas espessas para os olhinhos pretos do barbeiro. Este
confirmou com um movimento das pálpebras. Alspaye?, murmurou Mortimer. Irá
connosco, respondeu o barbeiro, passando para o outro lado do rosto. O bispo?,
perguntou ainda o prisioneiro. Estará à vossa espera lá fora, depois de
anoitecer, disse o barbeiro, e recomeçou de imediato a falar, com a voz exageradamente
alta, do sol, da parada desse dia, dos jogos que teriam lugar nessa tarde...
Quando
o barbeiro acabou, Mortimer lavou a cara e limpou-se a uma toalha sem sequer
sentir o seu contacto. Depois de Ogle ter partido na companhia do carcereiro, o
prisioneiro encheu os pulmões de ar com avidez. Só com dificuldade se conteve
de gritar: esteja pronto hoje à noite...
As palavras ecoavam-lhe na cabeça. Seria possível que a fuga se realizasse
realmente nessa noite? Aproximou-se do catre onde o companheiro de célula dormitava.
Meu tio, disse-lhe, é esta noite. O
velho lorde de Chirk voltou-se para o sobrinho com um gemido, ergueu para ele
os olhos desbotados que brilhavam com uma luz baça na sombra da cela e
respondeu num tom desanimado: ninguém se evade da Torre de Londres, meu
rapaz. Ninguém... Nem nesta noite nem noutra. O Mortimer mais jovem teve um
gesto de irritação. Porquê aquela obstinação negativa, aquela recusa do risco
num homem que, na pior das hipóteses, apenas tinha a perder algum, pouco, tempo
de vida? Dominou-se para não lhe responder com agressividade. Embora falassem
francês entre os dois, como toda a corte e a nobreza, enquanto o povo, os
soldados, os criados falavam inglês, receavam sempre que alguém percebesse o
que diziam. Mortimer voltou para junto da janela e observou a parada, de baixo
para cima, com o sentimento exaltante de que podia estar a fazê-lo pela última
vez. Os borzeguins da tropa passavam incessantemente à frente dos seus olhos. As
grossas solas de cabedal martelavam as lajes. Lorde de Wigmore não podia deixar
de admirar os movimentos precisos dos besteiros, os magníficos besteiros
ingleses, os melhores da Europa, que atiravam até doze flechas por minuto. No
meio do Green, Alspaye, o tenente, rígido como um poste, gritava a plenos
pulmões ao apresentar a guarda ao governador da Torre». In Maurice Druon, Os Reis
Malditos, A Loba de França, 1966, tradução de Helena Ramos, Círculo de
Leitores, 2006, ISBN 978-972-42-3862-3.
Cortesia
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