Idílio
«Ah, que inefável pureza!
Que candura imaculada!,..
Dir-se-ia que a Natureza
nasceu esta madrugada!...
A Primavera opulenta,
estremecendo d'amores,
palpita, anseia, rebenta
em cataclismos de flores.
Os velhos sátiros nus
correm atrás das bacantes...
A cor, o perfume e a luz
dão saturnais deslumbrantes.
O olhar d'ouro das boninas
contempla o azul; ao vê-las,
dir-se-ia que nas campinas
caíram chuvas de estrelas.
Entre as sebes orvalhadas
dos rumorosos caminhos
as madressilvas douradas
tapam a boca dos ninhos.
Heras, roseiras, silvedos,
numa doida confusão,
abraçam-se aos arvoredos
como Dalila a Sansão.
Os negros melros farsantes
dão risadas zombeteiras
dos loureiros verdejantes
das luminosas trapeiras.
Com a estrela d'alva, Flora
abriu os olhos ideais;
os seus pés da cor da aurora
voam nus sobre os trigais.
Ei-la a correr e a atirar
co'as róseas mãos pequeninas
borboletas para o ar,
lilases para as campinas.
Passa a rir pelas aldeias,
beliscando os namorados,
e arremessando às mãos cheias
os lírios pelos valados.
Calca com os pés aéreos
a morte cheia de horrores,
alastrando os cemitérios
duma inundação de flores.
Polvilha d'ouro e de prata
o campo, o bosque o vergel;
aos seus lábios de escarlata
vai buscar a abelha o mel.
Seus peitos entumecidos
são dois montes feiticeiros,
todos cobertos, floridos
com selvas de jasmineiros».
Poema de Guerra Junqueiro,
in ’A Musa em Férias’
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