«A
casa do meu passado minguou até ao tamanho do meu coração. Está condenada ao
camartelo, ao golpe de misericórdia nas ruínas. Não quero vê-la, apenas
senti-la no pulsar do coração do seu tamanho. E irei à vida, depois da morte me
passar na alma, sobre o lamento dos equívocos e das recordações. Morreu a tia Judite.
Escrevo estas palavras para acreditar nelas. O homem pode, afinal, suportar
tudo, até à morte. Até à morte. E posto que tudo a pó se reduz, veremos se a
coragem me não falta para a pó reduzir alguns dos vestígios materiais do tempo.
Restarão certas palavras e a memória pura, precursora do limbo. Mas a liberdade
absoluta é uma ilusão e os resíduos do passado uma violência apaixonada,
escolhos do futuro, pesados baús que me deixam as mãos manchadas de poeira, ao
abri-los. Neste sótão da minha infância, no casarão decrépito e condenado, as
recordações são mais vivas que as fotografias dos álbuns de contornos muito
esbatidos. A capeline branca que a
tia Judite ostenta, no grupo à porta da igreja (o casamento da irmã), está
naquela caixa de chapéus abandonada sobre uma cadeira império, sem fundo. O seu
sorriso luminoso é o que se destaca dentro do Opel descapotável dos anos 30,
com o meu avô ao volante, ainda de guarda-pó. O meu pai, de fato de linho e
chapéu de palha, sentado numa cadeira de lona junto da barraca da praia da
Ericeira, é apenas um comparsa de Judite, de pé, com o vestido claro de decote
quadrado, colado ao corpo pelo vento, a fronte liberta dos cabelos atirados
para trás, um braço levantado, horizontal, apontando para o mar. Procuro no coração
cansado outras paixões e os meus olhos despedem-se dessa imagem que não se
apagará jamais. E porque não reconhecer que busco mais os símbolos que o
sentido dessa existência inicial que me antecedeu e esperou, a mim, outro e de
outro modo? O filho que ela não teve? O amante que partiu? De tudo isto tenho
vaga consciência nos largos minutos em que fixo a silhueta esguia de Judite
quando jovem, levemente inclinada para a criança cuja mão desaparece na sua,
que idade eu teria? Um ano? Dois anos? A minha mãe também ali figura,
desamparada, braços ligeiramente abertos, olhos fixos no meu afastamento
titubeante. E viajo mais para trás, para os longínquos mistérios da sua
infância que anunciava o afectuoso e canibalesco cerco da família, pais,
irmãos, imobilizados num canapé de verga, ao lado esquerdo a floreira, o vaso
de porcelana com a planta de folhas espalmadas, e o seu laçarote parecendo
maior que o natural, supostamente branco sob a sépia que congela um tempo
indecifrável, ainda, e que antecipava já a gravidade da boca e a profundidade
dos olhos negros.
Ao
sarar as minhas feridas de guerra, quando reencontrei os lençóis de linho, o
cheiro da alfazema e da cera nos velhos soalhos, o seu perfume habitava os meus
sonhos de sobrevivente e quando a manhã a trazia ao meu quarto, com a luz do
sol filtrada pelas cortinas de renda, eu acreditava em tudo o que estava à
minha frente e nos outros sonhos que partilhávamos com o mundo da esperança. Estes
antigos retratos, estes móveis desconjuntados, estas malas sem fundo arrumadas
para nenhuma viagem, este espólio, estes despojos, não os quero. Só não posso
fugir a este doloroso esforço da memória para voltar a sentir a presença viva
que estes restos desmentem. Amar o impossível, como sempre... Amor que mata e
ressuscita e aflora a pele do meu rosto, os meus lábios, sentidos despertos
para todo o sinal de reconstituição fantástica que nasça do contacto com outro
corpo. Vai-se-me o resto da juventude que só ela salvava na obstinação da
liberdade que a manteve viva. Que outra fantasia poderá inspirar os meus
desejos, encorajar os meus combates, celebrar as minhas incertas vitórias?
Chegava-me sabê-la viva. Bastará, agora lembrá-la? Todo o peso do absurdo cai
sobre os meus ombros, enquanto as minhas mãos mergulham nas arcas do tempo, no meio
da noite gelada que invade o sótão do meu passado. E outros mistérios, os que
Judite guardou. No secretismo do seu corpo. Meias palavras para lá de portas
entreabertas». In Álvaro Guerra, Crimes Imperfeitos, Edições o Jornal, colecção Dias
de Prosa, 1990, Depósito legal nº 40709.
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