Textos e Sociedade no Garbe Al-Andaluz
«(…) Os restos, desvelados pelos arqueólogos, permitem reencontrar as
estruturas, o duradoiro, o que mais permanece. Os próprios actos individuais
ficam reduzidos ao osso dos gestos necessários do quotidiano. Mas, pelo seu
lado, os textos assinalam a mudança, entreabrem a porta ao acto individual e
gratuito, ao pensamento pessoal e também ao tumulto. Na prática do arqueólogo,
de certo modo o movimento pára, o som emudece. Os textos, ao contrário, aquecem
e chocam o ovo da vida. Por certo, os escritos dos autores muçulmanos medievais
olham a vida de cima, dos palácios, e raramente vão além do pórtico das mesquitas.
De qualquer modo, a partir dos textos é possível desfiar um rosário breve de
ideias gerais, muitas pacíficas, outras talvez não tanto.
Estremaduras e árabes peninsulares
O domínio e a cultura muçulmana radicaram-se mais profundamente no
chamado Portugal mediterrânico mas os textos indicam que os fluxos e refluxos
da maré vão bem além dessa fronteira natural. Poucos anos antes da conquista de
Lisboa (1147), oitenta e três anos decorridos sobre a reconquista de
Coimbra, o geógrafo Edrici situava o limite de Portugal e de algum modo do Garbe na corda do rio Vouga. A
dança das fronteiras, estremas ou Estremaduras pode ser mais bem acompanhada
pelos documentos dos arquivos cristãos. Num documento do ano 909 afirma-se: reinando na Galiza e na estrema do Minho e na estrema do Douro,
Ordonho, filho de Afonso. As estremas situavam-se então, a ocidente, na
região do Minho e na região do Douro. Século e meio mais tarde, nos forais de
São Martinho de Mouros e outras vilas situadas na linha do Douro transmontano, Fernando
Magno diz pretender ampliar as Estremaduras que, pelos vistos, galgavam então o
Douro para a outra margem. Os exemplos podiam multiplicar-se. E afinal a
chamada Reconquista acabou por
definir duas grandes Estremaduras, a portuguesa, que seguia a linha da costa
entre o Douro e o Tejo, e a Estremadura castelhana que corre em Castela-a-Nova
junto à fronteira portuguesa.
Os textos provam, igualmente, que houve árabes na Península Ibérica.
Esta afirmação pode parecer redundante. Mas não têm faltado vozes que minimizam
ou afirmam até que os árabes na Península Ibérica nunca existiram. E como há
sempre boas almas, dispostas a entregar-se às novidades e ao absurdo, é
necessário reafirmar que, no Andaluz e também no Garbe, se estabeleceram árabes, designadamente iemenitas. Nos exércitos da
conquista, no exército dito sírio que sufocou a revolta berbere, no estabelecimento
do emirato omíada. Ao longo do tempo não faltaram depois emigrantes
oriundos do Oriente. Os textos muçulmanos conservam também a descrição de ferozes
lutas tribais que prolongavam na Península Ibérica velhas lutas travadas na
Arábia e na Síria.
Fome de homens e transformações sociais
Os cavaleiros e peões da Reconquista
não pretendiam apenas alargar o seu espaço, cercar novas terras mas, usando
palavras antigas, ferrar o gado humano
que as adubava e rompia. E na caça ao homem não importava ao caçador se
eram muçulmanos ou cristãos, hispanos, árabes ou berberes. Não se nega a guerra
cruel e o extermínio, não se ocultam tão-pouco do lado muçulmano as almenaras
erguidas com as cabeças dos vencidos para chamar os crentes à oração, não se
subestima a fuga, por vezes maciça, e a deslocação de populações. Mas não afirmava o próprio Afonso VI, rei
de Leão e de Castela, que era impossível degolar todos os muçulmanos? O
que se afirma é que a vida continuou, certamente mais difícil nos primeiros
tempos, sob a espada dos novos senhores. Sesnando de Coimbra segurou os
vencidos da cidade e da região do Mondego e aplacou os muçulmanos e moçárabes
da reconquistada Toledo. Só numa
razia, Afonso Henriques trouxe para Coimbra mais de mil moçárabes. Por que
haveriam os senhores cristãos de rejeitar e expulsar os braços que lhes fariam
frutificar as terras? Não foram apenas as novidades técnicas da guerra
ou o choque frontal dos exércitos que, por si sós, trouxeram a vitória aos Estados
cristãos. Só quando Fernando Magno e seu filho Afonso VI se propõem aceitar a
originalidade social e até religiosa do Islão é que as conquistas se tornaram
irreversíveis. Basta ler os forais dos concelhos reconhecidos no território do Portugal
mediterrânico e compará-los com os direitos das populações dependentes do
Portugal atlântico tais como aparecem consignados nas cartas de foral». In
António Borges Coelho, O Tempo e os Homens, Questionar a História III,
Editorial Caminho, Colecção Universitária, Lisboa, 1996, ISBN 972-21-1076-4.
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