terça-feira, 12 de maio de 2015

Café República. Álvaro Guerra. «… no momento em que o progresso está no poder, a monárquica Inglaterra tem sindicatos livres e se navega no canal do Panamá. Uma no cravo, outra na ferradura, era a receita política para a manutenção do prestígio…»

jdact

«Até àquele dia de Junho de 1914 nunca fora pronunciado, em Vila Velha e no seu Concelho, o nome de Sarajevo. Em todo o país, aliás, os dedos da mão chegavam para contar aqueles que sabiam da existência de Sarajevo e onde era. Mesmo assim, Teófilo Oliveira, notário, e autoproclamada testemunha omnisciente da historia contemporânea e dos meandros da heráldica dos duques de Vila Velha, não resistiu a situar, com inesperado acerto, Sarajevo nos Balcãs, ao profetizar em pleno Café República graves consequências do assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando da Áustria. O primeiro grande massacre do século ia começar mas, em Vila Velha e em muitos outros lugares, ninguém sabia de nada. Nem sequer o douto notário, pessoa de erudição e experiência, expoente da gente honrada, tira-teimas de questões de águas e limites de pequenas propriedades bem como dos conflitos internacionais das potências de todos os tamanhos. Porém, nem no Verão de 14 nem depois, se pronunciou correctamente, em Vila Velha, o nome da cidade da Bosnia-Herzegovina, Saraievo, mas antes se acentuava o jota, como o Teófilo, naquela fatídica tarde de Junho, à mesa da tertúlia do Café República. Algumas das testemunhas desse momento histórico viriam a ter razões pessoais para não mais o esquecer, embora então saboreassem, com ripanço e segurança, o cafezinho da tarde, absolutamente incapazes de prever as voltas dramáticas que o tempo tramava nas suas costas.
De resto, tudo chegava tarde a Vila Velha. As notícias, também. Desde o momento em que Gavrilo Prinzip desfechou a pistola nos peitos nobres do herdeiro do Imperio Austro-Húngaro e da duquesa Solia até que o Teófilo Oliveira desdobrasse, com idêntico dramatismo, a gazeta chegada da capital, à mesa do Café República, decorreram três longos dias durante os quais os mortos se contaram apenas nas fileiras dos nacionalistas sérvios. O telégrafo, desabafou o notário, o telegrafo e o telefone só servem para mandar recados do ministério e do partido ao administrador do concelho. Um atraso, um atraso permanente, no momento em que o progresso está no poder, a monárquica Inglaterra tem sindicatos livres e se navega no canal do Panamá. Uma no cravo, outra na ferradura, era a receita política para a manutenção do prestígio do notário de Vila Velha. Embora se conhecessem os seus dedicados serviços à monarquia apeada em 1910, ninguém contestava a autodefinição que ele apregoava depois do advento da República: nem monárquico, nem republicano, homem de bem ao serviço da coisa pública. Quem havia para o contestar?
Como dizia António Lencastre, o nobre lavrador da Quinta das Toupeiras, quando do alto da milorde parada à porta do café, ao sábado à tarde, debitava pródigas e audazes verdades, republicanos, em Vila Velha, havia três, um barbeiro, um judeu e um estafeta, quando muito quatro, contando com o Praga de Mãe, que nem é homem nem mulher. Esta estimativa, relativamente rigorosa em 5 de Outubro de 1910, desactualizara-se progressivamente pela adesão de uma clientela sequiosa dos empregos e privilégios da nova administração e pelos efeitos da propaganda revolucionária cujos ecos chegavam da capital, nas páginas das gazetas, nas narrativas dos viajantes e na acção itinerante dos vultos míticos do Partido Republicano que, no Verão de 1911, levaram a República a Vila Velha com banda de música, foguetes e morteiros, grinaldas, festões, bandeirolas e discursos ao bom povo proferidos na varanda do Município. A iniciativa arregimentara trinta ardorosos aderentes, entre os quais o anterior administrador do Concelho, monárquico mas homem honrado, que viu recompensada a sua competência com a solene recondução no cargo.
Quanto aos perigosos carbonários a que se referia António Lencastre, repimpado no assento da milorde, haveria que contar com o radicalismo verbal do barbeiro Zacarias Gorjão entre a barba a um talassa, a massagem a um adesivo, o corte francês a um jovem oficial de finanças; com os boatos do Fonseca estafeta, colhidos durante as suas deslocações semanais nas esquinas, lojas e repartições da capital; com a fama de Aníbal Castro, no período de férias entre cada quinquénio de missão nas colónias longínquas das Áfricas e Ásias. Quanto ao Praga de Mãe, pintor de tabuletas com veleidades artísticas, a quem o fidalgo da Quinta das Toupeiras desdenhosamente se referia como não sendo nem homem nem mulher, viu recusarem-lhe a carta do Partido por causa do seu ar efeminado e dos rumores, nunca confirmados, que intimamente se ligavam ao único nome que se lhe conhecia, Praga de Mãe, por esta, vendedeira de hortaliças e legumes, viúva desembaraçada com lugar estabelecido na praça do mercado, contemplar, segundo a lenda local, as traquinices do filho com a ameaça constante e fatal: está quieto, menino, se não levas no cu! Portanto, nada mais natural em Vila Velha do que o cepticismo erudito do Teófilo, exercitado à mesa do Café República, sobre os efeitos distantes do atentado de Sarajevo e das ainda mais distantes consequências das últimas bombas rebentadas na capital, entre uma greve da Tabaqueira e uma surtida de dois pelotões de Caçadores 5 comandados por um oficial nostálgico. Como centro do mundo, Vila Velha era um lugar relativamente abrigado das contingências e caprichos da Historia». In Álvaro Guerra, Café República, folhetim do mundo vivido em Vila Velha (1914-1945), Edições O Jornal, Lisboa, 1982/1984, Depósito Legal 5036.

Cortesia de O Jornal/JDACT