Um
rescaldo, 319 DR
«A
grande trombeta soou. Arlen interrompeu o trabalho, erguendo os olhos para a tonalidade
arroxeada no céu da aurora. A névoa permanecia no ar, trazendo consigo um sabor
húmido e acre demasiado familiar. Um temor silencioso instalou-se-lhe no
estômago enquanto aguardava na quietude matinal, esperando que tivesse sido apenas
a sua imaginação. Tinha onze anos. Houve uma pausa e, logo a seguir, a trombeta
Soou duas vezes em rápida sucessão. Um sopro longo e dois curtos significavam
sul e este. O Casal da Floresta. O seu pai tinha amigos entre os lenhadores.
Atrás de Arlen, a porta da casa abriu-se e soube que a mãe lá estaria, cobrindo
a boca com as duas mãos. Arlen regressou ao trabalho, não precisando de ouvir
que teria de se apressar. Algumas tarefas podiam esperar um dia, mas o gado precisava
de ser alimentado e as vacas de ser ordenhadas. Deixou os animais no celeiro e
abriu os contentores de feno, levou alimento aos porcos e correu para ir buscar
um balde de madeira para o leite. A mãe agachava-se já por baixo da primeira
vaca. Pegou num banco adicional e combinaram a cadência dos movimentos, com o som
do leite contra a madeira entoando uma marcha fúnebre. Quando passaram ao par
de vacas seguinte, Arlen viu que o pai atrelava à carroça o seu cavalo mais
forte, uma égua castanha de cinco anos chamada Missy. Ao mover-se, a sua
expressão era severa. Que encontrariam
daquela vez?
Não
demorou a estarem na carroça, seguindo em frente, na direcção do pequeno
amontoado de casas na floresta. Era perigoso. Situava-se a mais de uma hora de
distância da estrutura guardada mais próxima, mas a madeira era necessária. A
mãe de Arlen, embrulhada no seu xaile gasto, abraçava-o enquanto avançavam. Já
sou crescido, mãe, queixou-se Arlen. Não preciso que me ampares como um bebé.
Não tenho medo. Não era inteiramente verdade, mas não seria bom que as outras
crianças o vissem agarrado à mãe pelo caminho. Já o ridicularizavam que
chegasse. Eu tenho medo, disse-lhe a mãe. E
se for eu a precisar de amparo?
Sentindo-se
subitamente orgulhoso, Arlen aproximou-se mais da mãe enquanto percorriam a
estrada. Não conseguia enganá-lo, mas, mesmo assim, sabia sempre o que dizer. Uma
coluna de fumo denso disse-lhes mais do que desejariam saber antes de alcançarem
o destino. Queimavam os mortos. E o facto de começarem cedo, não esperando pela
chegada de quem viria rezar, significava que seriam muitos. Demasiados, para
que cada um tivesse orações individuais, se pretendiam terminar a tarefa antes
do ocaso. O Casal da Floresta ficava a mais de oito quilómetros da quinta do
pai de Arlen. Quando chegaram, os últimos incêndios nas cabanas de madeira
tinham sido extintos, apesar, de na verdade, haver pouca coisa para arder.
Quinze casas. Todas reduzidas a entulho e cinza. As pilhas de madeira também,
disse o pai de Arlen, cuspindo para fora da carroça. Indicou com o queixo a
ruína enegrecida que restava da madeira cortada ao longo de uma estação. Com um
esgar, Arlen pensou que a cerca débil que impedia a fuga dos animais teria de
durar mais um ano e sentiu-se culpado de imediato. Afinal, era apenas madeira.
A
Oradora do povoado aproximou-se da carroça quando chegaram. Selia, a quem a mãe
de Arlen chamava por vezes Selia, a Estéril,
era uma mulher dura, alta e magra, com pele assemelhando-se a couro rijo. O seu
longo cabelo cinzento estava preso num carrapito apertado e embrulhava-se no
xaile como se fosse um distintivo da sua posição. Não tolerava asneiras, como
Arlen aprendera mais de uma vez sob a extremidade do seu cajado, mas, naquele
dia, a sua presença confortava-o. Como sucedia com o seu pai, havia algo em Selia
que o fazia sentir-se seguro. Apesar de nunca ter tido filhos, Selia
comportava-se como mãe de todos os habitantes do Ribeiro de Tibbet. Poucos
conseguiam igualar a sua sabedoria e menos ainda a sua teimosia. Quando se
estava nas boas graças de Seìia, esse parecia ser o local mais seguro do mundo.
É bom que tenhas vindo, Jeph, disse Selia ao pai de Arlen. A Silvy e o jovem
Arlen também, acrescentou, saudando-os com acenos de cabeça. Precisamos de
todas as mãos. Até o rapaz poderá ajudar. O pai de Arlen grunhiu, descendo da
carroça. Trouxe as ferramentas, disse. Diz-me onde poderemos ajudar». In Peter
Brett, O Homem Pintado, tradução de Renato Carreira, Edições Gailivro, 1001
Mundos, 2009, ISBN 978-989-557-677-7.
Cortesia
de Gailivro/JDACT