domingo, 3 de maio de 2015

O Arquivo Mitrokhine. Christopher Andrew e Vasili Mitrokhine. «O desertor do KGB tinha trazido consigo para a Grã-Bretanha pormenores não sobre algumas centenas, mas sim sobre milhares de agentes soviéticos e funcionários do serviço de informações em todos os pontos do globo»

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«Este livro baseia-se no acesso sem precedentes e sem restrições a um dos mais secretos e mais rigorosamente guardados arquivos do mundo do ramo da informação no estrangeiro do KGB, a Primeira Direcção Principal (PDP). Até aqui, o actual serviço russo de informações no estrangeiro, o SVR (Slujba Vnechnei Razvedki), esteve supremamente confiante em que um livro como este não pudesse ser escrito. Quando a revista alemã Focus informou em Dezembro de 1996 que um antigo funcionário do KGB tinha desertado para Inglaterra com os nomes de centenas de espiões russos, Tatiana Samolis, porta-voz do SVR, ridicularizou instantaneamente toda a história, classificando-a como absoluto disparate. Centenas de pessoas! Isso é coisa que não acontece!, declarou. Qualquer desertor podia obter o nome de um, dois, talvez três agentes, mas não de centenas! Os factos, porém, são de longe ainda mais sensacionais do que a história classificada como impossível pelo SVR. O desertor do KGB tinha trazido consigo para a Grã-Bretanha pormenores não sobre algumas centenas, mas sim sobre milhares de agentes soviéticos e funcionários do serviço de informações em todos os pontos do globo, alguns deles clandestinos a viver sob forte cobertura, disfarçados de cidadãos estrangeiros. Ninguém que tenha espiado a favor da União Soviética em qualquer período entre a Revolução de Outubro e as vésperas da era de Gorbachev pode confiar agora em que os seus segredos estejam seguros. Quando o Serviço Britânico de Informações Secretas (SIS) tirou o desertor e a sua família da Rússia em 1992, também trouxe seis caixas contendo as copiosas notas que ele tinha tomado quase diariamente durante doze anos, antes da sua reforma em 1984, sobre processos secretos do KGB que remontam até 1918. O conteúdo das caixas é descrito desde então pelo FBI americano como a mais completa e extensa informação jamais recebida de qualquer origem. O funcionário do KGB que reuniu este extraordinário arquivo, Vassili Mitrokhine, é actualmente cidadão britânico. Nascido na Rússia Central em1922, iniciou a sua carreira como funcionário do serviço soviético de informações no estrangeiro em 1948, numa altura em que os ramos de informação no estrangeiro do MGB (o futuro KGB) e do GRU (serviço de informação militar soviética) estiveram temporariamente combinados na Comissão de Informação. Na altura em que Mitrokhine foi enviado para a sua primeira colocação no estrangeiro em 1952, a Comissão tinha-se desintegrado e o MGB tinha retomado a sua tradicional rivalidade com o GRU. Os seus primeiros cinco anos nos serviços secretos foram passados na atmosfera paranóica gerada pela fase final da ditadura de Estaline, quando as agências de informação receberam ordens para realizar caças às bruxas em todo o Bloco Soviético contra conspirações titistas e sionistas, na sua maioria imaginárias.
Em Janeiro de 1953, o MGB foi oficialmente acusado de falta de vigilância, na caça aos conspiradores. A agência noticiosa soviética TASS fez o sensacional anúncio de que, nos últimos anos, agências de informação do sionismo mundial e do Ocidente conspiravam com um grupo terrorista de médicos judeus para liquidar a liderança da União Soviética. Durante os últimos dois meses de governo de Estaline, o MGB tentou demonstrar a sua acrescida vigilância perseguindo os perpetradores dessa inexistente conspiração. A sua campanha anti-sionista foi, na realidade, pouco mais do que um pogrom anti-semita mal disfarçado. Pouco antes da súbita morte de Estaline em Março de 1953, Mitrokhine recebeu ordens para investigar as alegadas ligações do correspondente do Pravda em Paris, Iuri Jukov, que se tinha tornado suspeito por causa das origens judaicas da sua mulher. Mitrokhine teve a impressão de que o brutal chefe supremo da segurança de Estaline, Lavrenti Beria, planeava implicar Jukov na suposta conspiração dos médicos judeus. Poucas semanas depois do funeral de Estaline, porém, Beria anunciou repentinamente que a conspiração nunca tinha existido, e isentou de culpa os alegados conspiradores. No Verão de 1953, a maioria dos colegas de Beria no Presidium estavam unidos pelo receio doutra conspiração, de que ele pudesse estar a planear um golpe de Estado para se pôr no lugar de Estaline. Ao visitar uma capital estrangeira em Julho, Mitrokhine recebeu um telegrama altamente secreto com instruções para ser ele próprio a decifrá-lo, e ficou espantado ao descobrir que Beria tinha sido acusado de actividades criminosas contra o partido e contra o Estado. Só mais tarde é que Mitrokhine soube que Beria tinha sido preso numa reunião especial do Presidium em 26 de Junho, depois duma conspiração organizada pelo seu principal rival, Nikita Kruschev. Da sua cela na prisão, Beria, escreveu cartas a implorar aos seus antigos colegas, pedindo-lhes pateticamente que lhe poupassem a vida e arranjassem o mais humilde dos empregos para mim: verão que daqui a dois ou três anos me terei endireitado e ainda lhes serei útil. Peço aos camaradas que me perdoem por escrever algo desconexamente e mal por causa da minha situação, e também por causa da má iluminação e de não ter o meu pince-nez». In Christopher Andrew e Vasili Mitrokhine, o KGB na Europa e no Ocidente, tradução de Freitas Silva, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1999/2000, ISBN 972-201-900-7.

Cortesia PDQuixote/JDACT