Estradas
«Por
giestas, tojo e trevo
um
dia abandonei-me. A medo,
na giesta
roçar a espádua,
e no
tojo a pele dos artelhos.
Dor,
mágoa nesse caminho,
um
dia seco entre montes.
Alcantilado
amarelo,
crua
miragem, passei
crente
do amor e alma
que
haviam de jorrar
para
os inocentes.
Mas
quem me dava
inocência
ou magia?
Quem
me conduzia
em
caminhos de soleiras
de
casa a casa vivas,
entre
a giesta e o tojo?
Só o
trevo me salva
da
cega dor. Delíquio
entre
flores minhas
que
na Primavera
recobrem
toda a estrada.
Eu
vi, andei, e o meu pacto
de
andar caminhos pobres
mais
pobre foi no tojo.
Mais
belo, alto, na giesta
o
corpo consolou-se
e
aceitou essa via
ao
longo da estrada amarga».
Poema de Fiama Hasse Pais Brandão, in ‘Cenas Vivas, Relógio d´Água’
Foz do Tejo, um país
«O rio
não dialoga senão pela alma
de
quem o olha e embebeu a sua alma
de
olhares ribeirinhos no passado
ou à
flor do pensamento no futuro.
É um
país que fala dentro da fronte,
olhando
as naus, navios, barcos pesqueiros
e o
trilho das famintas aves pintoras
de
riscos negros, que perseguem o odor
das
redes cheias, as outrossim poéticas
familiares
gaivotas. É uma costa inteira
de
imagens de gaivotas dentro dos olhos.
São
bocas a pensar razões da vida,
gargantas
já caladas pela nascença e morte,
quando
entre si se vêem ou juntas olham
o mar
dos seus próprios dias. São cabeças
velhas
de labutar, entre dentes cerrados,
as
palavras mudas de um ofício no mar,
antigas
de silêncio, como se no esófago
guardassem
há muito a sabedoria de ir
enfrentar
o mar, transpor o mar, estar.
Tal
como um rio o mar só quer falar
pela
dor e alegria de alma com que o chama,
há
séculos na orla, um povo mudo,
com
as palavras presas, guturais sem fôlego,
dentro
de si, tão firmes no palato, articuladas
na
língua interior. E o mar é quieto ou bravo,
e a
alma tensa de uma paixão secreta,
escondida
atrás da boca, e sempre aberta,
tal
como as pálpebras diante desta água.
Só a
alma sabe falar com o mar,
depois
de chamar a si o rio, no imo
de
cada um, recordações, de todos
os
que cumprem na linha da costa o seu destino.
O de
crianças, berços nascidos à beira-mar,
aleitadas
por água marinha bebida por rebanhos,
alimentadas
por frutos regados pela bruma.
Mesmo
quando petroleiros, se olharmos o mar,
passam
sem som na glote, para nós mesmos dizemos
que o
tempo já findou das caravelas outrora
e
dentro do nosso sangue passa o tempo de agora.
Também
as vacinas, fenícias áfonas no poema
que
as canta, sabem as formas, pelo olhar,
de
serem mulheres com peixes à cabeça.
E os
pregões que eu calo, revendo-as, eram outra
língua
do mar, os nomes com que nos chamam
para
o seu modo de levar entre as casas o mar.
Mas
as dores não as ecoa o mar, nem mesmo
as de
poetas, só as pancadas das palavras
no
encéfalo parecem ser voz do mar.
É uma
nação única de memórias do mar,
que
não responde senão em nós. Glórias, misérias,
que
guardámos por detrás do olhar lírico
e da
língua, a silabar dentro da boca.
Nunca
chamámos o mar nem ele nos chama
mas está-nos no palato como estigma».
Poema de Fiama Hassa Pais Brandão, in ‘Cena Vivas, Relógio d´Água, 1997’
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