domingo, 10 de maio de 2015

Relicário Douglas Preston e Lincoln Child. «Diminuiu ainda mais a força do motor enquanto se aproximavam de uma série de construções cerradas à beira do rio. De súbito, apareceu-lhes a entrada de um pequeno túnel forrado a tijolos»

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Ossos velhos
«Snow testou o regulador, verificou o estado das duas válvulas de ar, e percorreu com as mãos o escorregadio fato de mergulho. Estava tudo em ordem, tal como da última inspecção feita apenas há sessenta segundos. Só mais cinco minutos, disse o brigadeiro-mor, enquanto diminuía a velocidade da lancha para metade. Porreiro!, soou a voz sarcástica de Fernandez, sobrepondo-se ao ruído do enorme motor diesel. Na maior! Mais ninguém falou. Snow já tinha percebido que este tipo de conversas fiadas tinha tendência a morrer sempre que o grupo se aproximava do local a inspeccionar. Olhou por cima do ombro, para lá da popa, e ficou a ver a espuma do rio Harlem a espalhar-se atrás da hélice como um V acastanhado. O rio aqui apresentava-se mais largo, a deslizar pachorrentamente sob a bruma quente e cinzenta desta manhã de Agosto. Desviou o olhar na direcção da margem, e esboçou uma careta ao sentir o tubo de borracha roçar de encontro à pele do pescoço. Gigantescos blocos de apartamentos repletos de janelas quebradas. Carcaças fantasmagóricas de armazéns e fábricas. Um parque infantil abandonado. Não, nem por isso: ali estava uma criancinha a bambolear-se numa barra ferrugenta. Ó chefe do mergulho!, clamou a voz de Fernandez. - Vê lá se trazes vestidas as fraldinhas do treino! Snow puxou pelas extremidades das luvas e continuou a olhar na direcção da margem. A última vez que deixámos que uma virgem fizesse este tipo de mergulho, prosseguiu Fernandez, cag… o fato todo. Deus do Céu, que porcaria! Obrigámo-lo a ficar sentado no banco traseiro durante toda viagem de regresso à base. E isto passou-se lá para as bandas da Liberty Island. Uma simples brincadeira quando comparada à cloaca. Cala a boca, Fernandez, disse o brigadeiro sem erguer a voz.
Snow continuou a olhar por cima da popa. Compreendeu que tinha cometido um erro enorme ao pedir transferência para a brigada fluvial, vindo do departamento de polícia de Nova Iorque. Para mal dos seus pecados, lembrou-se de mencionar que em tempos tinha trabalhado num barco de mergulho, no mar de Cortez. Demasiado tarde percebeu que muitos dos homens da brigada fluvial vinham das empresas privadas e já tinham trabalhado nas plataformas de instalação de cabos submarinos e na manutenção dos oleodutos. Na opinião dessa gente, mergulhadores como ele eram todos uns mariquinhas sem nenhuma formação profissional, que só gostavam de águas límpidas e fundos de areias brancas. Fernandez, em particular, nunca o deixava esquecer-se disso.
O barco inclinou-se fortemente para estibordo à medida que o brigadeiro o aproximava da margem. Diminuiu ainda mais a força do motor enquanto se aproximavam de uma série de construções cerradas à beira do rio. De súbito, apareceu-lhes a entrada de um pequeno túnel forrado a tijolos a quebrar a monotonia das fachadas de cimento. O brigadeiro enfiou a embarcação pelo túnel e emergiu do outro lado, numa zona crepuscular. Snow deu-se conta de um cheiro indescritível que emanava destas águas perturbadas. No instante seguinte, sem que pudesse controlar-se, ficou com os olhos marejados de lágrimas. A custo reprimiu um acesso de tosse. Junto à proa, Fernandez olhava para trás, com uma expressão trocista no rosto. Sob o fato de mergulho aberto no peito, Snow viu que ele trazia vestida uma t-shirt com o logótipo não oficial da Brigada de Mergulho: mergulhamos na mer…em busca de coisas mortas! Só que desta vez não era de uma coisa morta que eles andavam à procura, mas de um tijolo enorme de heroína, lançado pela borda da ponte de caminhos-de-ferro de Humboldt, na noite anterior, durante um tiroteio com a polícia.
Dos dois lados do estreito canal havia uma passadeira em cimento. Mais à frente, uma lancha da polícia esperava por eles sob a ponte do caminho-de-ferro, com os motores desligados, a balançar ligeiramente no meio das sombras estriadas. Snow viu duas pessoas a bordo: o piloto e um homem encorpado vestido com um fato de poliéster de péssima qualidade. O indivíduo estava a ficar calvo e tinha um charuto molhado a projectar-se dos lábios. Ao vê-los aproximar-se, puxou as calças para cima, cuspiu no canal e ergueu uma das mãos. Ora vejam quem ali está!, disse o brigadeiro, apontando com a cabeça na direcção da lancha. O tenente D’Agosta!, replicou um dos mergulhadores junto à proa. Houve chatice da grossa. É chato sempre que matam um polícia, disse o brigadeiro, enquanto desligava o motor, pondo a embarcação em paralelo com a lancha da patrulha. D’Agosta recuou um pouco para falar com o grupo de mergulhadores. E à medida que recuava a lancha da polícia adornou ligeiramente para compensar o peso, e Snow percebeu que a água deixava no casco um resíduo oleoso e esverdeado». In Douglas Preston e Lincoln Child, Relicário, O inferno fica debaixo da terra, tradução de João Barreiros, Saída de Emergência, 2009, ISBN 978-989-637-126-5.

Cortesia de SEmergência/JDACT