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Dir-se-ia que só os ministros estavam com o rei-infante. O resto da nação
parecia empenhado em destruir aquilo que os três reis antecessores, com tanto
trabalho e energia, tinham construído: um reino criado numa pequena parcela de
terreno da Europa, e que, apesar disso, havia, ao diante, de Provocar o
assombro e a admiração dos outros povos pelos audaciosos feitos que os seus
filhos souberam realizar. Depois de se sujeitarem os regentes à concórdia, de
condições humilhantes para o poder, com o clero de Coimbra, um dos ministros
responsáveis, sobre o qual incidia mais fortemente a aversão de uns tantos
poderosos, viu-se coagido a abandonar o seu cargo: Pedro Anes. O jovem rei passou a outras mãos, as da
família Mendes Sousa, e, ainda que faltem documentos directos da anarquia que lavrou
nesse período do reinado de Sancho II, os documentos posteriores, que se referem
ao tempo em que el-rei Sancho andava roubado, provam que a anarquia
existia, e que as diversas facções se arrancavam umas às outras o monarca
infantil para, em seu nome, se assenhorearem do governo.
Tal
situação, é óbvio, não podia durar sempre. O filho de Afonso II foi crescendo,
desenvolvendo os seus naturais dotes de inteligência e adquirindo vontade
própria. Esta, porém, voltava-se inteiramente para as artes da guerra.
O
pai mostrara-se mais à vontade nas lutas civis, governando com indomável
energia. Faltara-lhe belicosidade para enfrentar o inimigo exterior e dilatar os
domínios do reino, mas sobejara-lhe autoridade para se impor e dominar os
inimigos internos. Sancho II, ao invés, mostrou-se desde logo um guerreiro, um
chefe militar à altura, deixando aos ministros a solução dos negócios
domésticos. O soberano, que não foi um cobarde, de qualquer ângulo que se
encare o seu vulto, rei cavaleiro,
brilhava nas arrancadas contra os moiros, mas era incapaz de sustentar uma luta
insignificante contra um bispo. Com dezasseis anos de idade, já então
aliado de Fernando II de Castela, com vista à expulsão dos muçulmanos, que
constituíam certos focos algo importantes encravados nas terras dos dois reinos,
capitaneou a expedição militar e tomou Elvas para a coroa portuguesa. São
unânimes os testemunhos que atribuem grande valor militar a Sancho
nessa empresa, coroada de tão bom resultado, como, aliás, sucedeu em todas em
que participou. Houvesse o rei infeliz tido pulso tão firme como firmeza revelava
no manejo da espada e outro teria sido o seu destino e glória.
Não
se depreenda, no entanto, que Sancho II seria um tíbio de carácter. Por mais de
uma vez, a sua vontade pessoal se opôs às pressões e intrigas de varia ordem,
acabando por levar a sua avante. Assim aconteceu, por exemplo, com a nomeação
dos ministros, que voltaram a ser os que tinham servido com o seu pai e nos
quais ele confiava em absoluto. Não puderam esses homens, infelizmente, dominar
a situação anárquica em que o país vivia. Donde menos se esperava surgiam os
obstáculos, os trabalhos. Campeavam as cabalas e afloravam as ambições. Com
circunstâncias tão favoráveis ao rebentar das paixões, recomeçaram as lutas com
o clero, o qual nem sempre levou a melhor». In Américo Faria e Herdeiros,
1958, Dez soberanos destronados, Grandes Soberanos Destronados, Edições
Parsifal, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-8760-00-5.
Cortesia
de Parsifal/JDACT