«Os românticos não viajam realmente para
o passado, trazem o passado para o presente». In Eduardo Lourenço
«(…)
Rubrico o fim da utopia. E poderia ter-lhe dito que, depois de cá estar há
coisa de um milhão de anos, o homem é ainda um animal relativamente racional, a
sua superioridade sobre as outras espécies dá-lhe a ilusão de ter o absoluto ao
seu alcance. E podia ter acrescentado que essa convicção é um risco que oscila
entre a criação e a destruição, e que as cíclicas buscas do absoluto desembocam
na submissão à ordem, nova ou velha. Mas, em vez de tal discurso, puxo-a para
mim, primeiro devagar, com firme brandura. Ela debate-se, o seu hálito morno
pousando nas minhas pálpebras, grita a
tua ordem! A tua ordem!, enquanto as minhas mãos se fecham sobre os seus
pulsos e o peso dos seus seios cai lentamente sobre o meu peito. Agoniza no
amor, gemendo prazeres nascidos numa antiga ansiedade, numa outra despedida repetida
e sem fim. Saliva, suor, esperma, estamos a afogar-nos nos nossos líquidos murmurando
palavras de outro tempo. No meio do fumo dos cigarros, na penumbra velando a nossa
nudez, recordamos episódios de antigos combates, quando o inimigo era comum e o
futuro nos defendia de tudo, até da realidade. Não é uma reconciliação. Nenhuma
ordem nos serve, digo eu, maculando o silêncio onde repousam as nossas
lembranças. E, no entanto, começamos a envelhecer.
Revejo
outras simplicidades que não afrouxam os laços da juventude, mesmo quando marcam
a irreversibilidade em imagens de melancólica limpidez... O cotovelo esquerdo
está apoiado sobre a pedra do balcão e a mão vai coçando o rosto muito branco
semeado de barba rala e áspera; depois, alisa meia dúzia de cabelos que lhe riscam
a calva luzente, e o dedo indicador vem dar a volta ao pescoço, devagar, entre
o colarinho e a pele, até parar atrás do lacinho preto pendurado sobre a maçã
de adão. O outro braço cai ao longo do corpo e a mão direita, cortada a meio pela
bainha do casaco branco e largueirão, pontua com gestos moles o monólogo. Deu o
que tinha a dar, nem mais nem menos. O Castro, com as suas relações, bem podia arranjar-me
comprador para isto. A revolução deu cabo do negócio. Mas quem tiver vontade e
força para trabalhar encontra aqui enxada para cavar bom dinheiro. É derrubar
este mono, e espalma a mão esquerda na pedra gasta. Instalar balcão frigorífico,
desses com vidros e cromados, abrir montra naquela parede, rasgar as portas,
estucar o tecto, rebocar as paredes, dar-lhes duas demãos de verde e começar a
contar o pé de meia.
Estou
cansado, Castro. Os meus pais fizeram-me ao mesmo tempo que o Café, em 1914. Nasci sete meses depois de lhe
abrirem a porta. Já teve três nomes e nunca fomos nós que lhos demos. Os
republicanos chamaram-lhe República, os salazaristas mudaram-no para Central e
os da revolução botaram-lhe o nome de 25 de Abril. E não tarda nada vão querer
trocar-lhe o nome outra vez. Quando voltar para a Galiza ainda hei-de arranjar
paciência para abrir um café só para ter o gosto de o baptizar. Farto, Castro,
farto de aturar os fregueses que me gastaram os pés e a paciência. O meu pai deixou
cá os ossos, mas eram outros tempos, o ofício de comes e bebes era uma arte
natural. Então não é que os das Finanças querem fazer-me industrial de
hotelaria, lá porque avio de vez em quando umas bifanas e uns cachorros! Já
o meu pai o fazia e todos o conheciam como o galego do Central. Industrial de
hotelaria!...
António
Maria muda o apoio do corpo do pé direito para o esquerdo, sublinha o
enfastiamento passando, sem gana, o esfregão pelo mármore e resmunga uma
resposta às boas-tardes do lavrador Luís Morais que vai amesandar-se num canto
à espera do carioca de limão das cinco da tarde. Sorvo o resto da cerveja já
tépida, vejo o galego a arrastar os pés deformados por décadas daquele mesa em
mesa. E dou balanço ao futuro que a minha geração, a seu tempo, sonhou, debruçada
naquelas mesas, ambicionando ultrapassar os triunfos dos conterrâneos, a cavalo
na bicicleta incerta de Inocêncio Clemente, ciclista sofredor, dentro do traje de luces do promissor espada Galo,
ao lado das plumas e missangas da vedeta Vera Rios, Marília para os íntimos e
patrícios». In Álvaro Guerra, Crimes Imperfeitos, Edições o Jornal, colecção Dias
de Prosa, 1990, Depósito legal nº 40709.
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