O Comércio do Invisível
«(…) Estava porém certa que o mundo físico e visível tal como se
desenvolvera não era para si. Ela via a criação do mundo terreno de acordo com
o relato bíblico. A Terra fora a última criação do Criador. Pretendera este por
um lado emendar a mão, depois de alguns dos seres celestes se revoltarem contra
a sua ordem e se exilarem nos recantos mais afastados do universo, criando aí um
reino independente, a partir do qual iniciaram uma guerra declarada aos seres que
lhe haviam permanecido fiéis, e por outro quisera descansar um pouco das
fadigas da criação, vindo tomar a brisa cósmica naquele parque chamado Terra, com
essa novidade que eram os seus habitantes. Acreditara ingenuamente que essa
plateia permaneceria arredada da luta dos seus anjos. A criação da Terra obedecera
a projecto distinto e estava apenas fadada a ser um intervalo de repouso nas
trabalhosas canseiras em que o Criador se metera depois da rebelião dos seus
anjos. O plano dessa criação desconhecia o Bem e o Mal e era por isso irrelevante
nas premissas da rebelião.
Descuidara entretanto o Criador o extraordinário avanço dos revoltosos.
Confinados a princípio a um pequeno recanto dos limites do universo, tinham vindo
a multiplicar os seus domínios. Souberam eleger entre eles um condutor seguro,
o Diabo ou o Divisor, que lhes dera uma estratégia de multiplicação imparável.
Aproximavam-se assim dos planos mais luminosos da Criação como uma enchente se
aproxima das terras secas. Durante largo espaço, funcionou a Terra como o lugar
onde o Criador, longe do Bem e do Mal, descansava das suas preocupações, que
muitas eram por via daquela guerra. Era o Paraíso, onde Deus, depois da
experiência meio falhada da criação dos anjos, tentara emendar a mão, voltando
a ter novas crias, desta vez mansas, ingénuas, humildes. Mas a capacidade de
multiplicação do Diabo era já de tal ordem que se apercebeu da totalidade dos
propósitos do Criador e se conseguiu insinuar no novo plano da Criação,
subvertendo-o por dentro. Para isso conseguiu infiltrar na Terra o Bem e o Mal,
que eram o meio ou a essência da luta dos seus anjos. Quando se apercebeu da
presença destas duas forças junto do homem e da mulher, o desespero do Criador
foi enorme. Viu os seus filhos mais jovens, nos quais apostara uma segunda
criação isenta dos erros ou das imprevisibilidades da primeira, pasto das
mesmas divisões em que a primeira criação soçobrara. Teve um momento de desalento,
ao medir as consequências daquela convulsão.
A Natureza terrena saíra das suas mãos imortal; a garantia desse estado
era o desconhecimento do Bem e do Mal. O primeiro resultado da destruição da
primitiva ordem era o colapso dessa eternidade. Com o fim do estado imortal da Natureza,
vinha o sofrimento da matéria, a dor, a doença, a noite, a escassez, a morte, o
esforço, quer dizer, o Mal. Sem remédio, a Natureza, que fora a esperança do
Criador, decaía de plano, perdendo a sua primitiva glória. Não que a Terra tivesse
caído definitivamente nas mãos da rebelião diabólica, mas volvera-se pelo menos
em novo e perigoso palco de investidas revoltosas. A Terra, que fora criada como
intervalo de repouso, via-se de repente motivo duma inesperada disputa. No fundo,
o confronto do plano anterior, próprio aos anjos, alastrava à Natureza terrena,
fazendo dela um tabuleiro decisivo das forças em confronto. A Terra passava, no
círculo geral do universo criado, de breve desvio quase irrelevante, tapada onde
Deus vinha saborear a ignorância do Bem e do Mal, a região do meio, verdadeiro
tampão entre os que habitavam as regiões luminosas e permaneciam fiéis ao
Criador e os sublevados que haviam decidido tudo submergir em negra treva.
Todo este processo significara uma carregada derrota para os planos
subtis onde viviam os anjos da Luz. A Terra, que fora criada muito próxima
desses planos, estava agora meio chamuscada pelas labaredas da rebelião.
Perdera o seu estado de jardim estável e glorioso e ganhara um semblante de fuligem
cinérea, com céus enegrecidos por tempestades de fumos narcóticos e malévolos.
Relâmpagos assustadores fendiam de há muito a escuridão em que a Terra
mergulhara depois da intromissão dos anjos revoltosos. Ao optarem pelo
conhecimento do Bem e do Mal, o homem e a mulher haviam perdido a imortalidade
da sua primitiva criação e haviam outrossim ganho a liberdade de optar, quase
sempre sem disso haverem a consciência, entre as duas forças em confronto». In
António Cândido Franco, Vida Ignorada de Leonor Teles, Edições Ésquilo, Lisboa,
2009, ISBN 978-989-8092-59-5.
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