domingo, 28 de junho de 2015

Vida Ignorada de Leonor Teles. António Cândido Franco. «O rombo das convenções, o apuro dos sentimentos e a transcendência do amor são o mote para a viagem ao seio de uma história apócrifa, velada e secreta, que os historiadores persistem em ocultar»

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O Comércio do Invisível
«(…) Estes revoluteantes acontecimentos que tinham lugar no interior de dona Leonor Teles eram porém inexistentes para quem apreciasse de fora a jovem sobrinha de Guiomar Pacheco. Bem podia ela identificar com os olhos de dentro a estranha criatura que aparecera a Tobias, que todos os que a observavam de nada se apercebiam. Ninguém a notara até aí e não era agora que alguém se dignava reparar nela. Tudo se passava em segredo, dentro da cortina de silêncio da sua capa escura e mantilha. Tirando a ocasional observação que fizera ao cónego de Braga a propósito do sinal de Caim, ou a expressão de pavor que deixara escapar na capela do paço de Barcelos, e numa altura em que ela descia e subia já a escada dos mundos sobrenaturais como se transitava simplesmente do patamar duma barbacã para o alto dum torreão, ninguém ouvira dela uma palavra sobre a sua estranha vivência interior. Deixara ainda, com teima, de comer carne, mas isso não passava aos olhos dos adultos de braveza ou de falta de costumes. Santa Maria val! Nunca nenhum viu tal cousa, exclamava com frequência a tia, Guiomar Pacheco, quando percebia que a menina não filhava carne de animal e só trincava frutas, folhas ou raízes. Isolara-se nos aposentos que os tios lhe haviam destinado no paço de Barcelos, afastando do convívio todo o ser humano, com excepção duma jovem aia, pouco mais velha do que ela, chamada Maria Peres, que se ocupava do preparo e do arranjo de sua casa. Viera recomendada pelos Castros galegos, que tinham ainda ligação de parentesco vago com o pai da donzela. Era enfiada, pouco atraente, seca de corpo, lábios de pergaminho, nariz deformado, mas levava na apreciação de dona Leonor Teles vantagem sobre todas as outras aias que os tios lhe haviam apresentado. Era silenciosa. O silêncio, num mundo em convulsão como o dela, sempre pronto à metamorfose, era o alicerce da sua experiência; a tagarelice, tão vulgar naquele género de meninas, era ao invés a sua distracção. Demais, era a Peres muito dotada para o apresto doméstico. A casa de dona Leonor Teles, apesar da ausência de pessoal, não perdia em relação à da irmã, que se distinguia por alfenim, ou à da prima, vistosa mas perdulária. Tinha asseio irrepreensível e a formosura dos seus adornos abalava os sentidos mais que qualquer outra. Mas acima de tudo, Maria Peres, fosse pelo jeito, fosse pelo apagamento, não afugentava a subtil exalação odorífera que fora a grande revelação da vida de dona Leonor Teles e que tão esquiva se mostrava ao contacto humano.
Guiomar Pacheco, quando se apercebeu daquele isolamento, não estranhou. Há muito que ambientara a alma à natureza furtiva e singular da sobrinha. O facto da sobrinha não filhar carne para comer fazia dela um ser separado da comunidade civil. Que outro se podia aguardar de ti, menina? És bicho de além mais que senhora de prol. A tua senda está mais numa cela de mosteiro que em torre de paço. E tanto insistia que um dia levou a sobrinha a Braga a visitar as agostinhas de Braga. Dona Leonor Teles, embrulhada nos panos da capelina, não deu sequer pelo lugar, a que mais tarde, em situação reforçada, regressou. Assim como assim, a tia gabava-lhe a limpeza, o gosto dos bordados e a marca dos vários enfeites coloridos que aformoseavam a moradia. E guardava por ela, quando a arredava da comunidade, um veio de respeito, que mais tinha a ver com a discrição que com a singularidade. Dona Leonor Teles não ligava ao assunto das monjas, porque a única cela que conhecia era a que tinha dentro de si. Era de mais bravia para se poder adequar à rígida formação duma casa de religiosas». In António Cândido Franco, Vida Ignorada de Leonor Teles, Edições Ésquilo, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8092-59-5.

Cortesia de Ésquilo/JDACT