segunda-feira, 20 de julho de 2015

A Paixão de Schopenhauer. Christoph Poschenrieder. «Com pouco menos de trinta anos, ansiava por ver como é que os filósofos e os letrados iriam reagir às suas ideias, como Hegel abandonaria o seu trono e ele se tornaria reconhecido…»

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Uma cabeça interessantíssima
«Schopenhauer estava furioso. Tinha encenado uma dança frenética. No final, na malandrice, os dois tipógrafos troçaram dele e, com as mãos encardidas de preto, fizeram-lhe uma careta. Saiu de casa do editor e desatou a correr, sem destino, o doutor de Filosofia, qual bola incandescente a deitar fagulhas pelo caminho. Era desesperante. Trabalhara todo o verão nas provas do manuscrito, como um escritor esfomeado, para que o prazo fosse cumprido. O editor tentara desenvencilhar-se, iludindo-o durante muito tempo, para, no fim, atribuir toda a culpa à tipografia. Schopenhauer arrastava-se e praguejava em volta das bancadas que estavam montadas desde manhã: estruturas instáveis, construídas à pressa, cobertas com lona. Carretos de duas rodas e trenós com patins de ferro rolavam sobre o pavimento; carregadores, carroceiros, carpinteiros, berravam atropelando-se uns aos outros, acompanhados das marteladas e do ruído das serras no meio da gritaria dos vendedores de mercado e dos seus ajudantes, que tentavam pôr um pouco de ordem naquele caos.
Um farrapo colou-se à sua bota. Schopenhauer começou a bater com os pés no chão; como se estivesse a pisar um adversário invisível. Tirou finalmente o trapo com a mão e atirou-o para o chão. Alguns dos artesãos baixaram as suas ferramentas e observavam o espectáculo com interesse. Ser o alvo das atenções causava-lhe mal-estar .Chega, pensou ele, já chega. Um relógio bateu as nove, dez, onze e, seguiram-se as três batidas fracas do quarto de hora. Meio-dia menos um quarto. Saiu a correr para a rua que ia dar directamente à Estação Principal dos Correios de Leipzig, deixando a confusão das bancadas do mercado para trás. Com alguma sorte, conseguiria escapar antes das doze batidas àquela cidade que de uma hora para a outra se tornava cada vez mais apertada e barulhenta. Como seria dali a uns dias, quando as bancadas estivessem todas abastecidas e entre elas começassem a mover-se, numa grande agitação, clientes, vendedores, curiosos, músicos, pedintes e comerciantes ambulantes de quinquilharia?
Aqui, arrancava-se um dente a um lavrador; ali, na tenda das aberrações, filhas de burgueses estremeciam com a visão de bebés deformados, imóveis, imersos em frascos de vidro. Salsicha grelhada, teatro de fantoches, circo de macacos, pulgas e cães para a plebe, um concerto no armazém de fazendas, um banquete no Alippi ou no Primavesi para os mais abastados. Nas despensas e no pátio do mercado, os artigos amontoavam-se em grandes pilhas: rolos de tecido, produtos de tabacaria, seda, couro, inutilidades, olaria, porcelana, partituras, artesanato e quadros, relógios, ferramentas, máquinas, lã e algodão, sapatos, chapéus, calças, casacos, sobretudos, vestidos, luvas, metais e medicamentos, vidros e cristais, papéis, máquinas impressoras e tintas de impressão, chumbos de tipografia e livros, livros, livros. Só o seu é que não.
Schopenhauer agitava-se por entre caixotes empilhados e um carro de bois, passou pelo Naschmarkt, que também era a despensa de Auerbach, de onde saíam silhuetas a piscar alegremente os olhos e a tatear na luz. Partiu uns dias antes, às quatro e meia da manhã, conseguiu ainda apanhar a primeira carruagem do correio, na qual chegou a Leipzig às duas horas da manhã. O resto da noite passou-a estirado num banco na estação dos correios. Os hotéis nas redondezas estavam cheios e ele demasiado cansado para ir à procura de uma estalagem. De qualquer modo, tinha ainda por companhia um boi e um burro, dois vendedores ambulantes malcheirosos e flatulentos que dormiam dobrados sobre os seus tabuleiros na outra extremidade da sala. Três horas depois, saíam os dois da sala fazendo uma grande barulheira; Schopenhauer seguiu-os imediatamente. Na taberna ao lado, bebeu um café fraco e comeu dois pãezinhos que ainda fumegavam quando ele os abriu e os pingou com uma compota escura.
O editor devia ter entrado no seu escritório por uma porta traseira; Schopenhauer esperara na porta da frente desde que a madrugada rompera. Uma palavra, só teria precisado de uma única palavra dele, mas os tipógrafos instruídos para o acalmarem não o largaram de vista, nem por nada, desde que ele começara a bater nos caixotes e a gritar irado com o editor dizendo-lhe que devia, por gentileza, cumprir com a sua parte do contrato, tal como ele o fizera. O cheiro a estrume de cavalo anunciava a estação dos correios. Havia uma canga no pátio, quatro cavalos exaustos, encharcados de suor. Entrou mais uma carruagem a ressoar pela porta da cidade. O postilhão produziu um grasno com a corneta e puxou as rédeas. Seis passageiros desceram um a seguir ao outro, apoiando-se no degrau com um passo firme.
Schopenhauer abriu a porta dos correios com um empurrão. Na outra extremidade da sala baixa com abóbadas apoiadas em colunas imponentes, destacava-se um funcionário por detrás de um balcão que lhe dava pela altura do peito. Quando parte o próximo correio para Dresden?, perguntou Schopenhauer. Normal ou urgente? Desculpe? Schopenhauer inclinou-se para a frente e pôs a mão atrás da orelha esquerda. Voltou imediatamente a tirá-la; detestava gestos habituais, como se revelassem demasiado sobre a sua pessoa. É indiferente. O funcionário olhou para o relógio e disse: De acordo com o horário, daqui a seis horas. Carruagem com regresso, para si, mais cedo. Quatro táleres, dezoito xelins e nove pfennings, gorjeta para o postilhão incluída. Aquele ali. Um postilhão provinciano, vestindo jaquetão amarelo com colarinhos azuis, uns calções de couro que já não eram brancos e botas altas, estava encostado à parede, a fumar um cachimbo de porcelana, e acenou obsequiosamente ao seu hipotético passageiro. Tanto?, perguntou Schopenhauer e pensou: é indiferente; só me quero ir embora, sair daqui». In Christoph Poschenrieder, A Paixão de Schopenhauer, 2010, tradução de Manuela Ramos, Saída de Emergência, 2011, ISBN 978-989-637-363-4.

Cortesia de SEmergência/JDACT