Ninguém
sabe mentir tão elegantemente como a rainha (1775-1780
«(…) A 29 de Novembro, a
rainha dona Maria Ana Vitória, irmã do rei de Espanha, assumiu a regência, e
negou imediatamente ao marquês de Pombal o acesso à real câmara do rei. Antes
do final do ano, chegou à corte lisboeta um novo embaixador de Espanha, o conde
Fernán-Núñez, fiel servidor do rei Carlos III e homem da sua maior confiança. Tratou-se
de uma nomeação que bem se podia considerar como o primeiro movimento de uma
estratégia conjunta do monarca espanhol e da sua irmã para favorecer um novo
acordo político entre as duas monarquias, uma aliança a que tanto os ingleses
como os franceses se tinham oposto durante o longo mandato de Pombal. Na realidade,
desde o início Fernán-Núñez provocou o receio do embaixador francês, o qual, na
sua correspondência com Versalhes, se queixava de que dona Maria Ana recebia o
embaixador espanhol mal chegava a Lisboa uma minuta de Madrid, enquanto que, no
seu caso, a rainha quase sempre dava uma desculpa para não o ver.
A França estava preocupada com o facto
de que um possível acordo entre as duas dinastias reinantes da Península afastasse
os Borbón espanhóis do chamado pacto de família
assinado com os seus primos franceses, e a Inglaterra com o facto de essa união
afectar o comércio com os seus respectivos impérios coloniais na América. Na realidade,
por real cédula expedida do seu palácio de La Granja a 1 de Agosto de 1776, o rei Carlos III de Espanha tinha
criado, de momento a título provisório, o vice-reinado de rio da Prata, que incluía
uma região de permanente conflito com Portugal. A verdade era que o encarregado
de levar a cabo esta tarefa era enviado para
pedir satisfações aos portugueses pelos insultos cometidos em Rio da Prata.
Mas na realidade o objectivo era o de potenciar o papel de Buenos Aires, eleita
como capital do vice-reinado, devido à importância que esta cidade tinha vindo a
desenvolver nos últimos vinte anos, não sendo possível pensar em consegui-lo
sem resolver o conflito com os seus vizinhos. De maneira que a preocupação do
embaixador francês tinha fundamento.
Entretanto, o conde Fernán-Núñz ia
informando a rainha de Portugal do nascimento das distintas netas de Carlos III
nos quatro reinos e ducados onde este exercia a sua influência através da sua família.
Na corte de Lisboa ainda faltava casar os dois filhos mais velhos da princesa herdeira,
dona Maria. O príncipe da Beira, José,
de 16 anos, e o seu irmão, o infante João, quase com 10. No entanto, embora Pombal
estivesse agora aparentemente fora de circulação, em ambas as cortes foi considerado
que naquele momento seria arriscado um casamento de um português com uma espanhola.
Em meados de Fevereiro de 1777, o
rei de Portugal, quase moribundo, deu uma ordem que desconcertou a regente. O
príncipe José deveria contrair
matrimónio com a sua tia, a infanta dona Maria Benedita, irmã da sua mãe, a princesa
dona Maria. O argumento da grande diferença de idades, em detrimento da infanta,
que tinha 31 anos, não serviu à regente para impedir que o casamento se realizasse
poucos dias depois. Mas para além do desconcerto da rainha, tratava-se de um
matrimónio que voltaria a fechar a família real portuguesa numa perigosa endogamia,
uma vez que não podemos esquecer que o próprio príncipe José era fruto de uma união entre sobrinha e tio, se bem que naquela
altura ainda não se soubesse que estas repetidas uniões entre consanguíneos podiam
perpetuar, potenciando-as, as prováveis taras de uma linhagem.
A rapidez
com que a ordem real foi executada leva a pensar que com ela se tentou parar alguma
intriga no seio da mesma família, possivelmente da parte da regente, talvez em conivência
com o embaixador espanhol. Não menos interessante é a tese, posta em circulação
por alguns historiadores, mas da qual não existem provas contundentes, de que se
tratou de um golpe à distância de Pombal
para fazer saltar a ordem sucessória, procurando dessa forma a imediata elevação
ao trono do príncipe da Beira, José,
em detrimento da sua mãe, a princesa do Brasil, dona Maria, de notórias simpatias
espanholas. A 24 de Fevereiro de 1777,
isto é, três dias depois de celebrado o matrimónio entre tia e sobrinho, o rei
de Portugal morria. E com a sua morte ocorreu a total destituição de Pombal,
por ordem da nova rainha, dona Maria I. A soberana começou a trabalhar numa antiga
ideia da sua mãe: afastar Portugal de Inglaterra e aproximá-lo o mais possível
da monarquia espanhola, abrindo inicialmente a possibilidade aos tratados políticos
e comerciais entre as duas nações, e, posteriormente, contemplando a perspectiva
de retomar a tradição dos matrimónios espanhóis,
interrompida após a trágica morte de dona Bárbara de Bragança, já que, entre os
seus filhos varões, ainda faltava casar o infante João, que naquela altura acabava
de fazer 10 anos. É verdade que este segundo filho ocupava um lugar subalterno na
corte, embora não tanto como alguns historiadores têm afirmado até agora. No Auto de
Levantamento, que descreve detalhadamente a cerimónia da aclamação da sua
mãe ao trono, o infante João, é qualificado como Condestável do Reino, um título de grande importância
histórica, e na cuidadosa distribuição dos lugares que designa o protocolo da
corte está situado imediatamente depois do novo príncipe do Brasil, José, e ao mesmo
nível da sua mãe, ou seja, ocupando o terceiro lugar na escala hierárquica do
reino». In Marsilio Cassotti, Carlota Joaquina, O Pecado Espanhol, tradução de
João Boléo, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-626-170-2.
Cortesia
EdosLivros/JDACT