«(…)
Falei com o sotaque do Velho País, que ele reconheceu com duas palavras de
acolhimento e um sorriso benevolente; a que se seguiu no entanto uma forte
expressão de surpresa. Vi então nessa expressão um sinal de desconfiança, e
julgo não me ter enganado. Desconfiança, sim, e mesmo uma espécie de pavor
envergonhado. O pavor de um homem que diz para si mesmo que foi talvez
apanhado, mas que não tem a certeza e a quem repugna parecer injustamente rude
ou descortês. Estou, disse ele, à procura de uma rua que devia ser aqui perto.
Tem o nome de Hubert-Hughes. Não demorei a localizá-la. Ei-la. Escreveram
apenas H. Hughes, em letras ilegíveis... - Obrigado pela sua benevolência!
Obrigado por ter acusado os autores do mapa em vez dos meus olhos envelhecidos!
Falava com branda lentidão, como se tivesse de sacudir o pó a cada palavra
antes de apresentá-la. Mas as suas frases eram sempre correctas, cuidadas, sem
elipses nem contracções, sem modos familiares; por vezes até, pelo contrário,
velhas e antiquadas, como se tivesse conversado mais vezes com os livros do que
com os seus semelhantes. No passado, ter-me-ia orientado por instinto, sem
sequer consultar um plano ou um mapa... Não é longe. Posso conduzi-lo até lá.
Conheço o bairro.
Rogou-me
que o não fizesse, mas por mera delicadeza. Insisti, e daí a três minutos
estávamos lá. Parou na esquina da rua, percorreu-a lentamente com os olhos
antes de dizer, um tanto desdenhoso: é uma rua pequena. Uma rua muito pequena.
Mas, enfim, é uma rua. A extrema banalidade da observação acabou por lhe
conferir a meus olhos uma espécie de originalidade. Que número Procura? Eu
estendia-lhe, não é verdade, a vara do bom senso. Ele não a agarrou. Nenhum
número em particular. Vinha simplesmente ver a rua. Vou subi-la, depois
descê-la pelo passeio do outro lado. Mas não quero retê-lo, o senhor deve ter
as suas ocupações. Obrigado por me ter acompanhado até aqui! No ponto que
estava, eu não queria já ir-me embora assim, precisava de compreender. A
aparente extravagância da personagem não me pusera menos curioso. Decidi
ignorar as suas últimas palavras, como se fossem apenas mais uma cortesia. O
senhor deve ter recordações desta rua! Não. Nunca aqui tinha vindo.
Caminhávamos
de novo lado a lado. Eu observando-o, com olhares sucessivos, e ele, de nariz
no ar, admirando os prédios. Cariátides. Uma arte sólida e tranquilizadora. Uma
bela rua burguesa. Um pouco estreita... Os andares inferiores devem ser sombrios.
Salvo talvez além, do lado da avenida. O senhor é arquitecto! A minha frase
soou como a resposta a uma adivinha. Marcada apenas, para não dar a impressão
de uma familiaridade excessiva, Por um ínfimo tom interrogativo. De modo nenhum!
Estávamos já no fim da rua, ele parou de súbito. Ergueu os olhos para ler a
placa azul e branca. Depois baixou-os em sinal de recolhimento; as suas mãos,
pendentes ao longo do corpo, uniram-se pouco depois à frente, com os dedos
curiosamente entrecruzados, como para segurar um chapéu imaginário. Fui
colocar-me atrás dele.
Rua
Hubert Hughes, Resistente (1919-1944). Esperei que ele se descontraísse e
depois se voltasse para mim, e perguntei, numa voz envergonhada, como quando
murmuramos no meio de um funeral: Conheceu-o? Respondeu no mesmo tom de
confidência: O nome dele não me diz nada. Insensível à minha perplexidade,
retirou do bolso um caderninho e tomou algumas notas breves, antes de me dizer:
Afirmaram-me que havia em Paris trinta e nove ruas ou avenidas ou praças com
nomes de resistentes. Já tinha visitado vinte e uma, antes desta. Faltam-me
dezassete. Dezasseis, se excluir a praça Charles de Gaulle, que atravessei
noutro tempo, quando ela se chamava I’Étoile...
E pretende visitá-las todas? Em quatro dias, tenho tempo de sobra. Porquê
quatro dias? Eu só via uma explicação: Depois, regressa ao país? Não creio...
Pareceu
subitamente embrenhado nos seus pensamentos, muito longe de mim e da rua
Hubert-Hughes. Teria eu feito mal em mencionar o país, o regresso? Mas era
talvez a evocação desses quatro dias que
o punha assim de humor meditativo. Não podia imiscuir-me mais na sua alma.
Preferi desviar a conversa. Não conheceu Hubert-Hughes, mas não é certamente
por acaso que se interessa pela Resistência... Demorou algum tempo a responder.
Tardava a descer à terra. Como dizia? Tive que repetir a minha observação. É
verdade, eu tinha vindo estudar para França durante a guerra. E conheci alguns
resistentes». In Amin Maalouf, Escalas do Levante, Difel 82, Algés, 1997, ISBN
972-290-355-1.
Cortesia
de Difel/JDACT