terça-feira, 21 de julho de 2015

Escalas do Levante. Amin Maalouf. «A aparente extravagância da personagem não me pusera menos curioso. Decidi ignorar as suas últimas palavras, como se fossem apenas mais uma cortesia. O senhor deve ter recordações desta rua!»

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«(…) Falei com o sotaque do Velho País, que ele reconheceu com duas palavras de acolhimento e um sorriso benevolente; a que se seguiu no entanto uma forte expressão de surpresa. Vi então nessa expressão um sinal de desconfiança, e julgo não me ter enganado. Desconfiança, sim, e mesmo uma espécie de pavor envergonhado. O pavor de um homem que diz para si mesmo que foi talvez apanhado, mas que não tem a certeza e a quem repugna parecer injustamente rude ou descortês. Estou, disse ele, à procura de uma rua que devia ser aqui perto. Tem o nome de Hubert-Hughes. Não demorei a localizá-la. Ei-la. Escreveram apenas H. Hughes, em letras ilegíveis... - Obrigado pela sua benevolência! Obrigado por ter acusado os autores do mapa em vez dos meus olhos envelhecidos! Falava com branda lentidão, como se tivesse de sacudir o pó a cada palavra antes de apresentá-la. Mas as suas frases eram sempre correctas, cuidadas, sem elipses nem contracções, sem modos familiares; por vezes até, pelo contrário, velhas e antiquadas, como se tivesse conversado mais vezes com os livros do que com os seus semelhantes. No passado, ter-me-ia orientado por instinto, sem sequer consultar um plano ou um mapa... Não é longe. Posso conduzi-lo até lá. Conheço o bairro.
Rogou-me que o não fizesse, mas por mera delicadeza. Insisti, e daí a três minutos estávamos lá. Parou na esquina da rua, percorreu-a lentamente com os olhos antes de dizer, um tanto desdenhoso: é uma rua pequena. Uma rua muito pequena. Mas, enfim, é uma rua. A extrema banalidade da observação acabou por lhe conferir a meus olhos uma espécie de originalidade. Que número Procura? Eu estendia-lhe, não é verdade, a vara do bom senso. Ele não a agarrou. Nenhum número em particular. Vinha simplesmente ver a rua. Vou subi-la, depois descê-la pelo passeio do outro lado. Mas não quero retê-lo, o senhor deve ter as suas ocupações. Obrigado por me ter acompanhado até aqui! No ponto que estava, eu não queria já ir-me embora assim, precisava de compreender. A aparente extravagância da personagem não me pusera menos curioso. Decidi ignorar as suas últimas palavras, como se fossem apenas mais uma cortesia. O senhor deve ter recordações desta rua! Não. Nunca aqui tinha vindo.
Caminhávamos de novo lado a lado. Eu observando-o, com olhares sucessivos, e ele, de nariz no ar, admirando os prédios. Cariátides. Uma arte sólida e tranquilizadora. Uma bela rua burguesa. Um pouco estreita... Os andares inferiores devem ser sombrios. Salvo talvez além, do lado da avenida. O senhor é arquitecto! A minha frase soou como a resposta a uma adivinha. Marcada apenas, para não dar a impressão de uma familiaridade excessiva, Por um ínfimo tom interrogativo. De modo nenhum! Estávamos já no fim da rua, ele parou de súbito. Ergueu os olhos para ler a placa azul e branca. Depois baixou-os em sinal de recolhimento; as suas mãos, pendentes ao longo do corpo, uniram-se pouco depois à frente, com os dedos curiosamente entrecruzados, como para segurar um chapéu imaginário. Fui colocar-me atrás dele.
Rua Hubert Hughes, Resistente (1919-1944). Esperei que ele se descontraísse e depois se voltasse para mim, e perguntei, numa voz envergonhada, como quando murmuramos no meio de um funeral: Conheceu-o? Respondeu no mesmo tom de confidência: O nome dele não me diz nada. Insensível à minha perplexidade, retirou do bolso um caderninho e tomou algumas notas breves, antes de me dizer: Afirmaram-me que havia em Paris trinta e nove ruas ou avenidas ou praças com nomes de resistentes. Já tinha visitado vinte e uma, antes desta. Faltam-me dezassete. Dezasseis, se excluir a praça Charles de Gaulle, que atravessei noutro tempo, quando ela se chamava I’Étoile... E pretende visitá-las todas? Em quatro dias, tenho tempo de sobra. Porquê quatro dias? Eu só via uma explicação: Depois, regressa ao país? Não creio...
Pareceu subitamente embrenhado nos seus pensamentos, muito longe de mim e da rua Hubert-Hughes. Teria eu feito mal em mencionar o país, o regresso? Mas era talvez a evocação desses quatro dias que o punha assim de humor meditativo. Não podia imiscuir-me mais na sua alma. Preferi desviar a conversa. Não conheceu Hubert-Hughes, mas não é certamente por acaso que se interessa pela Resistência... Demorou algum tempo a responder. Tardava a descer à terra. Como dizia? Tive que repetir a minha observação. É verdade, eu tinha vindo estudar para França durante a guerra. E conheci alguns resistentes». In Amin Maalouf, Escalas do Levante, Difel 82, Algés, 1997, ISBN 972-290-355-1.

Cortesia de Difel/JDACT