De
Jerusalém à margem esquerda do Guadiana
«(…)
Ainda que os seus ascendentes tivessem sido figuras próximas da Coroa e com
alguma projecção e fortuna no seio da nobreza, o que lhes possibilitou mesmo
armar diversos cavaleiros, Afonso Peres Farinha não passaria de um
humilde cavaleiro de um escudo e de uma
lança, como o próprio não hesita em afirmar na lápide que mandou gravar para
o Mosteiro de Marmelar. Seria, pois, mais um entre muitos outros nobres
detentores de pouco ou quase nenhum património e a quem o rei, de quem eram
vassalos, atribuía soldadas tão reduzidas que mais não lhes permitia que a
aquisição e manutenção das suas próprias armas e cavalo. Talvez isso seja, em
parte, o resultado de alguma perda de importância social, económica e militar
por parte de seu pai. Foi, pois, a busca de fortuna e, naturalmente, de algum
protagonismo, que o impeliu a demandar paragens mais meridionais e a instalar-se,
como muitos outros jovens cavaleiros nas mesmas condições, nas regiões de
fronteira. Quase sempre impacientes, agressivos, por vezes brutais, turbulentos
e instáveis, como os caracteriza Georges Duby, era nessas zonas que esperavam
encontrar as oportunidades para o desempenho das façanhas guerreiras que
ambicionavam protagonizar e que se convertiam num verdadeiro tirocínio para a
idade adulta e, acima de tudo, para uma bem sucedida e, se possível, lucrativa carreira de armas.
Será,
pois, neste contexto que, como um autêntico cavaleiro
andante, Afonso Peres se instala na fronteira sul do reino. E será também
aí que surgirão as tão desejadas ocasiões para demonstrar o seu valor e capacidades
guerreiras, ao ponto de se converter, nas palavras de Hermenegildo Fernandes,
num grande especialista da fronteira.
Talvez Afonso Peres tenha chegado a essas regiões acompanhado por um pequeno
contingente próprio, ou então talvez se tenha rapidamente integrado num dos
muitos bandos de aventureiros que pululavam nestas zonas raianas e que
colocavam os seus serviços à disposição de quem mais os beneficiasse. A maior
parte dos exemplos conhecidos aponta justamente no sentido da preferência por
uma errância, ou vagabundagem, colectiva e não individual ou mesmo solitária.
Os principais motivos para esta opção parecem-nos fáceis de identificar: em
primeiro lugar, por uma questão de segurança, pois assim podiam proteger-se
mais facilmente de eventuais perigos; em segundo, porque talvez fosse mais fácil
encontrar acolhimento junto de uma casa senhorial ou de uma ordem militar
disposta a recrutá-los; e em terceiro, porque muitos destes jovens faziam-se
acompanhar, nessa errância, por alguns dos que consigo haviam sido criados, ou
que haviam, na mesma altura, recebido a investidura da cavalaria e cujos
familiares mantinham, muitas vezes, relações de vassalagem ou outro tipo de
dependência com a casa de origem do cavaleiro que, a partir de então,
encabeçava essa pequena mesnada.
Diz-nos
a lápide do Mosteiro de Marmelar que depois da sua ida para sul e durante cerca
de 5 a 8 anos andou em guerra com muitos cavaleiros
poderosos seus vizinhos, isto é, integrado nas mesnadas de alguns grandes
senhores da região. Talvez na de Fernando, senhor de Serpa, ou na de
Martim Anes Vinhal, que por essa altura actuava nas regiões do leste alentejano
e que em 1238 desempenhou um papel
fundamental na conquista de Mértola; ou ainda na de João Garcia Sousa que,
também durante o reinado de Sancho II, embora em data que não é possível
precisar, conseguiu submeter pela força das armas a vila de Alegrete. Uma outra
hipótese é a de se ter associado à Ordem de Santiago, que então, sob o comando
de Paio Peres Correia, lançava uma grande ofensiva contra as regiões do leste
alentejano, ou mais provavelmente à do Hospital que, poucos anos antes, acabara
de conquistar as praças-fortes de Moura e de Serpa». In Miguel Gomes Martins,
Guerreiros Medievais Portugueses, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN
978-989-626-486-4.
Cortesia
Esfera dos Livros/JDACT