«(…) Embarcámos num Skymaster,
preparados para uma longa viagem aérea até à Índia. Iríamos parar em Lyon,
Roma, Atenas, Cairo, Darham e, por fim, Bombaim, no total, trinta e seis
horas... Não havia jets nesses dias,
e todas as vezes que parávamos para abastecimento de combustível ou troca de
passageiros éramos levados para bons restaurantes nos aeroportos e tínhamos anda
tempo suficiente para dar uma volta pelas lojas, sempre abarrotadas de artigos
regionais e nacionais. Quão diferentes eram então as viagens das de hoje, em aviões
que oferecem uma viagem rápida, depois do tédio das esperas prolongadas e de
serviços de aeroporto demorados!
Íamos agora direitos à Índia e, à medida que o tempo passava, sentia-me
cada vez mais excitada e ansiosa. Ao meu lado, Lica repetia constantemente o
que eu teria de fazer ou não fazer quando lá chegássemos: como deveria
cumprimentar a família e a quem me dirigir primeiro. Repetia-me os nomes e
explicava-me a relação que tinham uns com os outros. Tarefa árdua quando se
tratava de uma enorme família como a dos Gaitonde. Mais uma paragem antes de Bombaim.
Ainda tínhamos de aterrar em Darham, no Médio Oriente. Quanto chegámos,
disseram imediatamente ao comandante que o avião não poderia prosseguir viagem para
a Índia. Tínhamos de ficar ali até novas ordens. Que terrível desapontamento! A
seguir fomos conduzidos por um árabe alto e corpulento até às nossas
acomodações improvisadas. Era já noite. Saímos com o nosso guia do edifício da
alfândega e começámos imediatamente a pisar areia. Parecia que tínhamos entrado
em pleno deserto. Estava tão escuro que não se podia ver além de um ou dois metros.
Por fim, chegámos a umas barracas abandonadas. Teríamos de passar a noite ali o
mais confortavelmente que nos fosse possível. Ao entrar notei logo que a
barraca estava dividida ao longo de todo o comprimento por um corredor, com
quartos de um lado e retretes do outro.
O cheiro nauseabundo de urina quase nos sufocava. Cada quarto tinha apenas
uma cama de ferro com um colchão e em cima, dobrado, um par de lençóis. A
janela não tinha cortinados, deixando-nos à vista de quem passasse do lado de fora.
Estava um calor mortal, mas as janelas tinham sido seguras com pregos para não
deixarem entrar os mosquitos da malária. O calor era sufocante e sentia as
gotas de suor a escolher-me pelo corpo abaixo. Experimentei ir ao banheiro para
uma rápida lavadela, mas tive de voltar a correr para o quarto, pois não havia
água, o autoclismo não funcionava e o cheiro da sanita, bloqueada, era
insuportável. Esta foi, sem dúvida, uma noite memorável, tirada mesmo das Mil e uma noites...
Na manhã seguinte fomos de novo conduzidos ao aeroporto para continuarmos
a viagem. Nunca nos informaram da verdadeira causa daquela inesperada paragem
prolongada, mas acabámos por deduzir que tivesse sido devido a condições
atmosféricas não favoráveis ou a qualquer coisa relacionada com a guerra em
Israel.
Começava já a sentir-me sonolenta, devido ao contínuo roncar do motor do
avião, mas Lica mostrava-se cada vez mais excitado. Quantos anos tinha esperado
por este momento! Olha, daqui a nada vais
ver no horizonte uma enorme auréola cor de lannja reflectida no céu... São as
luzes da cidade de Bombaim. É uma maravilha Olhei para fora mas não se via
nada. Estava tudo escuro, escuro como breu. Não
falta muito, dizia ele, vais ver é
uma vista para nunca esquecer. Olhei outra vez, continuava escuro. Depois
de quase meia hora e com um pouco menos de entusiasmo, Lica repetiu: já deve estar por pouco. Vai ser urna vista
maravilhosa, o céu vai parecer como se estivesse em fogo, tal é o esplendor da
brilhante iluminação de Bombaim. Eu continuava a olhar para aquela noite
escura. De súbito ouviu-se um clique do autofalante e a seguir a voz do
comandante, que anunciava: Senhoras e senhores, estamos a sobrevoar Bombaim e
preparamo-nos para aterrar dentro de minutos». In Edila Gaitonde, As Maçãs
Azuis. Portugal e Goa 1948 – 1961, Editorial Tágide, F. Oriente, 2011, ISBN
978-989-95179-9-8.
Cortesia de E. Tágide/JDACT