terça-feira, 21 de julho de 2015

As Maçãs Azuis. Portugal e Goa 1948 – 1961. Edila Gaitonde. «Levei algum tempo a aperceber-me de que aquele vasto manto negro que cobria toda a enorme área do estado de Maharashtra tinha sido causado pelo mais devastador ciclone que esta parte do subcontinente indiano jamais havia sofrido»

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«(…) Acenderam-se os sinais de apenar cintos e apagar os cigarros. Olhei outra vez para fora e franzi os olhos, forçando-me a ver melhor através daquela escuridão. Com efeito, lá estava uma fosca luzinha a piscar, muito ao longe. Continuei a perscrutar através da janela evitando olhar para Lica. Não suportava vê-lo tão desapontado. Pobre Lica, tinha esperado dez longos anos para voltar ao seu país e as luzes de Bombaim tinham sido a última visão que guardara na memória. Mas não estavam lá. As luzes não se viam.
Levei algum tempo a aperceber-me de que aquele vasto manto negro que cobria toda a enorme área do estado de Maharashtra tinha sido causado pelo mais devastador ciclone que esta parte do subcontinente indiano jamais havia sofrido. A vida quotidiana fora severamente perturbada e a destruição era incalculável. Não admirava, portanto, que a notícia do que tinha ocorrido nos tivesse sido ocultada durante o voo pela tripulação de bordo. Havia já muito tempo que a tensão e excitação, pelo que me estava reservado para um futuro próximo, viera a aumentar de dia para dia, de tal forma que quando, finalmente, cheguei à Índia senti-me como que destituída de qualquer sensação. O impacto foi violento. Acabava de chegar a um mundo totalmente diferente, impregnado de cheiros intensos e vozes múltiplas em línguas múltiplas. As pessoas pareciam diferentes, vestidas de maneiras diversas, falando um babel de línguas estranhas e sempre apressadas, num contínuo vaivém, a empurrar carrinhos ou em discussões umas com as outras.
A confusão e o caos dos primeiros momentos desnortearam-me por completo. O grande temporal tinha causado um extenso apagão e toda a área de Bombaim estava às escuras. O edifício do aeroporto e a alfândega eram agora iluminados pelas fracas luzes de vários candeeiros petromax, cujo cheiro a petróleo se juntava aos outros odores. Todo aquele estado estava desordenado e às escuras. Quando saímos do edifício das alfândegas, chamou-me a atenção um grande grupo de pessoas que nos abanavam freneticamente. Parecia impossível, mas muitos dos nossos familiares tinham conseguido enfrentar a natureza para irem ao aeroporto. Parecia incrível terem conseguido lá chegar com tais condições atmosféricas. Fiquei admirada com o grupo que se me deparou à frente. A maior parte deles eram jovens. Havia duas raparigas que trajavam saris e tinham duas longas tranças; ao lado, quatro ou cinco rapazes que me pareciam todos idênticos em idade e aparência. Fui logo apresentada a todos eles naquela altura e várias vezes depois. Ao princípio não conseguia mesmo distingui-los.
As raparigas em saris eram a Kishori, casada com o sobrinho mais velho de Lica, e a Shalini, uma das sobrinhas, já estudante de Medicina. Pareciam tão jovens! Reparei então na senhora indiana que estava por detrás, mais baixa e de pele muito branca, que me olhava, sorridente. Nem me parecia uma figura real. Havia qualquer coisa de etéreo na sua aparência. Tinha o cabelo penteado para trás, preso num rolo e enfeitado à volta com uma pequena grinalda de jasmim branco. Os brincos de diamantes em forma de coração e um outro preso à narina direita faiscavam mesmo àquela fraca luz dos petromax. Envergava um sari cor-de-rosa de fino organdi que me fazia lembrar uma delicada boneca de Dresden. Esta é a Taí, disse Lica, orgulhoso, a minha irmã mais velha. Taí sorriu e saudou-me, juntando as mãos num namasté. Eu sorri também e fiquei calada, sem saber o que dizer Começaram logo todos a falar entusiasticamente numa língua que me era desconhecida. Riam e gracejavam com grande animação, por vezes todos ao mesmo tempo. Nem era para admirar, uma vez que Lica voltava a casa depois de dez anos de ausência.
Quando o bagageiro apareceu com as malas, despedimo-nos dos membros da família que voltavam para o centro de Bombaim e juntámo-nos a Taí e a Bhauji, o nosso cunhado, com quem ficaríamos a viver provisoriamente. Bhauji era um homem de meia-idade, alto, forte e de tez morena, homem de poucas palavras, mas sempre de bom humor. Era então o engenheiro chefe do distrito de Thana, que ficava a alguns quilómetros da cidade de Bombaim. Bhauji vivia numa enorme moradia de dois andares, rodeada por jardins, numa área mais afastada destinada a funcionários de chefia. No total, havia talvez uma meia dúzia de moradias. À volta delas havia ainda um clube e campos de jogos para uso dos moradores. O filho de Bhauji, recentemente casado vivia com eles. Em condições normais, o trajecto do aeroporto até Thana levaria cerca de meia hora de automóvel. Todavia, isso tinha-se tornado quase impossível devido à destruição causada pela tempestade. Havia árvores sem conta caídas por terra, entulhos de destroços a bloquear as estradas, de tal forma que tivemos frequentemente de nos meter através de prados, a corta-mato, para ultrapassarmos as vias bloqueadas. A certa altura tivemos de nos apear para caminharmos ao lado do carto, evitando assim que, com o nosso peso, as rodas ficassem enterradas na terra mole. Não se via nada na escuridão da noite e nem via onde punha os pés». In Edila Gaitonde, As Maçãs Azuis. Portugal e Goa 1948 – 1961, Editorial Tágide, F. Oriente, 2011, ISBN 978-989-95179-9-8.

Em memória de Ofélia e Álvaro José

Cortesia de E. Tágide/JDACT