«(…) Acenderam-se os sinais de apenar cintos e apagar os cigarros.
Olhei outra vez para fora e franzi os olhos, forçando-me a ver melhor através daquela
escuridão. Com efeito, lá estava uma fosca luzinha a piscar, muito ao longe.
Continuei a perscrutar através da janela evitando olhar para Lica. Não suportava
vê-lo tão desapontado. Pobre Lica, tinha esperado dez longos anos para voltar
ao seu país e as luzes de Bombaim tinham sido a última visão que guardara na
memória. Mas não estavam lá. As luzes não se viam.
Levei algum tempo a aperceber-me de que aquele vasto manto negro que
cobria toda a enorme área do estado de Maharashtra tinha sido causado pelo mais
devastador ciclone que esta parte do subcontinente indiano jamais havia sofrido.
A vida quotidiana fora severamente perturbada e a destruição era incalculável.
Não admirava, portanto, que a notícia do que tinha ocorrido nos tivesse sido
ocultada durante o voo pela tripulação de bordo. Havia já muito tempo que a
tensão e excitação, pelo que me estava reservado para um futuro próximo, viera
a aumentar de dia para dia, de tal forma que quando, finalmente, cheguei à
Índia senti-me como que destituída de qualquer sensação. O impacto foi violento.
Acabava de chegar a um mundo totalmente diferente, impregnado de cheiros
intensos e vozes múltiplas em línguas múltiplas. As pessoas pareciam
diferentes, vestidas de maneiras diversas, falando um babel de línguas
estranhas e sempre apressadas, num contínuo vaivém, a empurrar carrinhos ou em
discussões umas com as outras.
A confusão e o caos dos primeiros momentos desnortearam-me por completo.
O grande temporal tinha causado um extenso apagão e toda a área de Bombaim
estava às escuras. O edifício do aeroporto e a alfândega eram agora iluminados
pelas fracas luzes de vários candeeiros petromax,
cujo cheiro a petróleo se juntava aos outros odores. Todo aquele estado estava
desordenado e às escuras. Quando saímos do edifício das alfândegas, chamou-me a
atenção um grande grupo de pessoas que nos abanavam freneticamente. Parecia
impossível, mas muitos dos nossos familiares tinham conseguido enfrentar a natureza
para irem ao aeroporto. Parecia incrível terem conseguido lá chegar com tais
condições atmosféricas. Fiquei admirada com o grupo que se me deparou à frente.
A maior parte deles eram jovens. Havia duas raparigas que trajavam saris e tinham duas longas tranças; ao
lado, quatro ou cinco rapazes que me pareciam todos idênticos em idade e
aparência. Fui logo apresentada a todos eles naquela altura e várias vezes
depois. Ao princípio não conseguia mesmo distingui-los.
As raparigas em saris eram a
Kishori, casada com o sobrinho mais velho de Lica, e a Shalini, uma das
sobrinhas, já estudante de Medicina. Pareciam tão jovens! Reparei então na
senhora indiana que estava por detrás, mais baixa e de pele muito branca, que
me olhava, sorridente. Nem me parecia uma figura real. Havia qualquer coisa de
etéreo na sua aparência. Tinha o cabelo penteado para trás, preso num rolo e
enfeitado à volta com uma pequena grinalda de jasmim branco. Os brincos de
diamantes em forma de coração e um outro preso à narina direita faiscavam mesmo
àquela fraca luz dos petromax.
Envergava um sari cor-de-rosa de fino
organdi que me fazia lembrar uma
delicada boneca de Dresden. Esta é a Taí, disse Lica, orgulhoso, a minha
irmã mais velha. Taí sorriu e saudou-me, juntando as mãos num namasté.
Eu sorri também e fiquei calada, sem saber o que dizer Começaram logo todos a
falar entusiasticamente numa língua que me era desconhecida. Riam e gracejavam
com grande animação, por vezes todos ao mesmo tempo. Nem era para admirar, uma
vez que Lica voltava a casa depois de dez anos de ausência.
Quando o bagageiro apareceu com as malas, despedimo-nos dos membros da
família que voltavam para o centro de Bombaim e juntámo-nos a Taí e a Bhauji, o
nosso cunhado, com quem ficaríamos a viver provisoriamente. Bhauji era um homem
de meia-idade, alto, forte e de tez morena, homem de poucas palavras, mas
sempre de bom humor. Era então o engenheiro chefe do distrito de Thana, que ficava
a alguns quilómetros da cidade de Bombaim. Bhauji vivia numa enorme moradia de
dois andares, rodeada por jardins, numa área mais afastada destinada a
funcionários de chefia. No total, havia talvez uma meia dúzia de moradias. À
volta delas havia ainda um clube e campos de jogos para uso dos moradores. O
filho de Bhauji, recentemente casado vivia com eles. Em condições normais, o trajecto
do aeroporto até Thana levaria cerca de meia hora de automóvel. Todavia, isso
tinha-se tornado quase impossível devido à destruição causada pela tempestade.
Havia árvores sem conta caídas por terra, entulhos de destroços a bloquear as
estradas, de tal forma que tivemos frequentemente de nos meter através de
prados, a corta-mato, para ultrapassarmos as vias bloqueadas. A certa altura
tivemos de nos apear para caminharmos ao lado do carto, evitando assim que, com
o nosso peso, as rodas ficassem enterradas na terra mole. Não se via nada na
escuridão da noite e nem via onde punha os pés». In Edila Gaitonde, As Maçãs
Azuis. Portugal e Goa 1948 – 1961, Editorial Tágide, F. Oriente, 2011, ISBN
978-989-95179-9-8.
Em memória de Ofélia e Álvaro José
Cortesia de E. Tágide/JDACT