A
ampulheta
«Imóvel sobre a nessa, a ampulheta
assinalava o movimento incessante do mundo. Colocada junto a uma janela aberta de
par em par, quem a observava via ao longe os telhados vermelhos do casario de
Lisboa descendo pela colina do castelo, espalhando-se pelo vale entre o Rossio e
o Tejo, e depois subindo pela encosta que levava ao Carmo e à Trindade. Lá do alto,
a azáfama da cidade era imperceptível. O dia estava calmo e ameno, próprio de um
suave começo de Outono; o Sol já começara o seu movimento descendente, e aproximava-se
lentamente das torres das Portas de Santa Catarina, uma das entradas da muralha
que ainda envolvia quase toda a cidade, tal como el-rei Fernando I o
determinara, havia mais de um século. Sentado ao lado da mesa, Álvaro olhava fixamente
os minúsculos grãos de areia que se precipitavam para a âmbula inferior. O passar
do tempo sempre o fascinara e ele próprio era um testemunho vivo da marcha
impiedosa dos anos. O seu rosto era percorrido por inúmeras rugas profundas, a pele
encarquilhara, e, na cabeça, os raros cabelos estavam brancos, tal como a longa
barba; na boca restavam poucos dentes e alguns dos sobreviventes eram indignos do
seu fidalgo possuidor; o corpo curvara um pouco, e, ao lado da cadeira, um bordão
revelava que António Ataíde se movimentava com alguma dificuldade. Sobre a mesa
estava a sua espada. É certo que já não a empunhava há dez anos, desde que enfrentara
os mouros às portas de Arzila, mas o fidalgo insistia em a ter junto de si. Vossa
senhoria não tem precisão. Já ganhou a sua aposentadoria, repetia pacientemente
o criado que o ajudava a sair do leito pela manhã. Nunca se sabe. El-rei pode
precisar de mim.
Apesar do corpo envelhecido, a mente
permanecia lúcida, a visão precisa e a mão, de pena em punho, continuava a voltear
habilidosamente sobre o papel quando escrevia poemas. Amava a vida, apesar de
todos os sofrimentos que experimentara, mas estava certo de que o fim se aproximava.
Naquele momento, porém, o espírito de Álvaro não se preocupava com a iminência da
morte; acompanhava, concentradíssimo, o fio de areia em movimento. Os últimos grãos
aproximavam-se do orifício, e a sua atenção redobrou, ao mesmo tempo que espreitava
pelo canto da janela o campanário do Convento do Carmo. Ainda o fio de areia
continuava a caminhada descendente quando os sinos do convento começaram a dobrar
e o seu som ecoou pela cidade. Exasperado, Álvaro deu uma palmada na mesa. Pintado, um dos cães que
circulavam pelo paço, e que apreciava particularmente aquela câmara, ergueu a cabeça.
Álvaro estava irritado, pois acabara de confirmar que o sineiro dos carmelitas
não tocava o sino à hora certa.
Frei
Pedro mostrara-lhe, orgulhoso, um relógio que havia sido dado ao convento por um
penitente devoto do Santo Condestável, e explicara-lhe que passara a guiar-se pelo
novo instrumento para tocar o sino. Álvaro tentou demovê-lo, explicando-lhe que
aquelas maquinetas tinham muitas imperfeições e que nunca poderiam substituir o
rigor do tempo marcado pelas ampulhetas. O frade impertinente encolhera os ombros
e não ligara nem à sua fidalguia nem à sua longa experiência. Agora, porém, ele
tinha a prova de que o relógio não cumpria rigorosamente a sua função e de imediato
decidiu escrever ao superior do convento. Desde criança que assistia à imposição
do relógio como medidor do tempo, porém não estava convencido. O tempo fluía incessantemente,
em silêncio, enquanto a máquina registava o avanço dos minutos aos solavancos; ora,
o Sol não dava saltinhos enquanto percorria diariamente o seu trajecto pelo céu.
E aquelas máquinas estragavam-se e começavam a desacertar. Continuava a preferir
as velhas ampulhetas. É verdade que tinham que de ser viradas regularmente, mas
andara pelo mar e convivera com comunidades monásticas, e tanto a marinhagem como
os monges sabiam sempre a hora. O tempo exacto interessava sobretudo a quem
tinha afazeres nocturnos, pois de dia, todos se orientavam pelo Sol. E as gentes
da cidade podiam acertar o horário com a ajuda dos sinos, que não precisavam daquela
coisa; como acabava de provar, a sua ampulheta era mais certeira que o relógio de
frei Pedro». In João Paulo O. Costa, O Fio do Tempo, 2009, Temas e Debates, Círculo
de Leitores, 2011, ISBN 978-989-644-135-7.
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