«Trabalhar com nobreza, esperar com sinceridade, enternecer-se com o
homem, esta é a verdadeira filosofia». In Fernando Pessoa
«(…) O eléctrico já chegou e partiu, Ricardo Reis vai sentado nele,
sozinho no banco, pagou o seu bilhete de setenta e cinco centavos, com o tempo
aprenderá a dizer, Um de sete e meio, e volta a ler a funérea despedida, não
pode convencer-se de que seja Fernando Pessoa o destinatário dela, em verdade
morto, se considerarmos a unanimidade das notícias, mas por causa das
anfibologias gramaticais e léxicas que ele abominaria, tão mal o conheciam para
assim lhe falarem ou falarem dele, aproveitaram-se da morte, estava de pés e
mãos atados, atentemos naquele lírio branco e desfolhado, como rapariga morta
de febre tifóide, naquele adjectivo gentil, meu Deus, que lembrança tão bacoca,
com perdão da vulgar palavra, quando tinha o orador ali mesmo a morte
substantiva que todo o mais deveria dispensar, em especial o resto, tudo tão
pouco, e como gentil significa nobre, cavalheiro, garboso, elegante, agradável
, cortês, é o que diz o dicionário, lugar de dizer, então a morte será dita nobre,
ou cavalheira, ou garbosa, ou elegante, ou agradável, ou cortês, qual destas
terá sido a dele, se no leito cristão do Hospital de S. Luís lhe foi permitido
escolher, praza aos deuses que tenha sido agradável, com uma morte que o fosse,
só se perderia a vida.
Quando Ricardo Reis chegou ao cemitério, estava a sineta do portão
tocando, badalava aos ares um som de bronze rachado, como de quinta rústica, na
dormência da sesta. Já a esconder-se, uma carreta levada a braço bambeava
lutuosas sanefas, um grupo de gente escura seguia a carroça mortuária, vultos
tapados de xales pretos e fatos masculinos de casamento, alguns lívidos
crisântemos nos braços, outros ramos deles enfeitando os varandins superiores
do esquife, nem mesmo as flores têm um destino igual. Sumiu-se a carreta lá
para as profundas, e Ricardo Reis foi à administração, ao registo dos defuntos,
perguntar onde estava sepultado Fernando António Nogueira Pessoa,
falecido no dia trinta do mês passado, enterrado no dia dois do que corre,
recolhido neste cemitério até ao fim dos tempos, quando Deus mandar acordar os
poetas da sua provisória morte. O funcionário compreende que está perante
pessoa ilustrada e de distinção, explica solícito, dá a rua, o número, que isto
é como uma cidade, caro senhor, e, porque se confunde nas demonstrações, sai
para este lado do balcão, vem cá fora, e aponta, já definitivo, Segue pela
alameda sem nunca se desviar, vira no cotovelo, para a direita, depois sempre
em frente, mas atenção, fica-lhe do lado direito, aí a uns dois terços do
comprimento da rua, o jazigo é pequeno, é fácil não dar por ele. Ricardo Reis
agradeceu as explicações, tomou os ventos que do largo vinham sobre mar e rio,
não ouviu que fossem eles gemebundos como a cemitério conviria, apenas estão os
ares cinzentos, húmidos os mármores e liozes da recente chuva, e mais verde-negros
os ciprestes, vai descendo por esta álea como lhe disseram, à procura do quatro
mil trezentos e setenta e um, roda que amanhã não anda, andou já, e não andará
mais, saiu-lhe o destino, não a sorte. A rua desce suavemente, como em passeio,
ao menos não foram esforçados os últimos passos, a derradeira caminhada, o
final acompanhamento, que a Fernando Pessoa ninguém tornará a acompanhar, se em
vida realmente o fizeram aqueles que em morto o seguiram. É este o cotovelo que
devemos virar. Perguntamo-nos que viemos cá fazer, que lágrima foi que guardámos
para verter aqui, e porquê, se as não chorámos em tempo próprio, talvez por ter
sido então menor a dor que o espanto, só depois é que ela veio, surda, como se
todo o corpo fosse um único músculo pisado por dentro, sem nódoa negra que de
nós mostrasse o lugar do luto. De um lado e do outro os jazigos têm as portas
fechadas, tapadas as vidraças por cortininhas de renda, alva bretanha como de
lençóis, finíssimas flores bordadas entre dois prantos, ou de pesado croché
tecido por agulhas como espadas nuas, ou richeliâ, ou ajur, modos de dizer
afrancesados, pronunciados sabe Deus como, tal qual as crianças do Highland
Brigade que a estas horas vai longe, navegando para o norte, em mares onde o
sal das lágrimas lusíadas é só de pescadores, entre as vagas que os matam, ou
de gente sua, gritando na praia, as linhas fê-las a companhia coats and clark,
marca âncora, para da história trágico-marítima não sairmos». In
José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, Lisboa, 1995,
ISBN 972-21-0286-9
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