quinta-feira, 30 de julho de 2015

O Ano da Morte de Ricardo Reis. José Saramago. «Segue pela alameda sem nunca se desviar, vira no cotovelo, para a direita, depois sempre em frente, mas atenção, fica-lhe do lado direito, aí a uns dois terços do comprimento da rua, o jazigo é pequeno, é fácil não dar por ele»

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«Trabalhar com nobreza, esperar com sinceridade, enternecer-se com o homem, esta é a verdadeira filosofia». In Fernando Pessoa

«(…) O eléctrico já chegou e partiu, Ricardo Reis vai sentado nele, sozinho no banco, pagou o seu bilhete de setenta e cinco centavos, com o tempo aprenderá a dizer, Um de sete e meio, e volta a ler a funérea despedida, não pode convencer-se de que seja Fernando Pessoa o destinatário dela, em verdade morto, se considerarmos a unanimidade das notícias, mas por causa das anfibologias gramaticais e léxicas que ele abominaria, tão mal o conheciam para assim lhe falarem ou falarem dele, aproveitaram-se da morte, estava de pés e mãos atados, atentemos naquele lírio branco e desfolhado, como rapariga morta de febre tifóide, naquele adjectivo gentil, meu Deus, que lembrança tão bacoca, com perdão da vulgar palavra, quando tinha o orador ali mesmo a morte substantiva que todo o mais deveria dispensar, em especial o resto, tudo tão pouco, e como gentil significa nobre, cavalheiro, garboso, elegante, agradável , cortês, é o que diz o dicionário, lugar de dizer, então a morte será dita nobre, ou cavalheira, ou garbosa, ou elegante, ou agradável, ou cortês, qual destas terá sido a dele, se no leito cristão do Hospital de S. Luís lhe foi permitido escolher, praza aos deuses que tenha sido agradável, com uma morte que o fosse, só se perderia a vida.
Quando Ricardo Reis chegou ao cemitério, estava a sineta do portão tocando, badalava aos ares um som de bronze rachado, como de quinta rústica, na dormência da sesta. Já a esconder-se, uma carreta levada a braço bambeava lutuosas sanefas, um grupo de gente escura seguia a carroça mortuária, vultos tapados de xales pretos e fatos masculinos de casamento, alguns lívidos crisântemos nos braços, outros ramos deles enfeitando os varandins superiores do esquife, nem mesmo as flores têm um destino igual. Sumiu-se a carreta lá para as profundas, e Ricardo Reis foi à administração, ao registo dos defuntos, perguntar onde estava sepultado Fernando António Nogueira Pessoa, falecido no dia trinta do mês passado, enterrado no dia dois do que corre, recolhido neste cemitério até ao fim dos tempos, quando Deus mandar acordar os poetas da sua provisória morte. O funcionário compreende que está perante pessoa ilustrada e de distinção, explica solícito, dá a rua, o número, que isto é como uma cidade, caro senhor, e, porque se confunde nas demonstrações, sai para este lado do balcão, vem cá fora, e aponta, já definitivo, Segue pela alameda sem nunca se desviar, vira no cotovelo, para a direita, depois sempre em frente, mas atenção, fica-lhe do lado direito, aí a uns dois terços do comprimento da rua, o jazigo é pequeno, é fácil não dar por ele. Ricardo Reis agradeceu as explicações, tomou os ventos que do largo vinham sobre mar e rio, não ouviu que fossem eles gemebundos como a cemitério conviria, apenas estão os ares cinzentos, húmidos os mármores e liozes da recente chuva, e mais verde-negros os ciprestes, vai descendo por esta álea como lhe disseram, à procura do quatro mil trezentos e setenta e um, roda que amanhã não anda, andou já, e não andará mais, saiu-lhe o destino, não a sorte. A rua desce suavemente, como em passeio, ao menos não foram esforçados os últimos passos, a derradeira caminhada, o final acompanhamento, que a Fernando Pessoa ninguém tornará a acompanhar, se em vida realmente o fizeram aqueles que em morto o seguiram. É este o cotovelo que devemos virar. Perguntamo-nos que viemos cá fazer, que lágrima foi que guardámos para verter aqui, e porquê, se as não chorámos em tempo próprio, talvez por ter sido então menor a dor que o espanto, só depois é que ela veio, surda, como se todo o corpo fosse um único músculo pisado por dentro, sem nódoa negra que de nós mostrasse o lugar do luto. De um lado e do outro os jazigos têm as portas fechadas, tapadas as vidraças por cortininhas de renda, alva bretanha como de lençóis, finíssimas flores bordadas entre dois prantos, ou de pesado croché tecido por agulhas como espadas nuas, ou richeliâ, ou ajur, modos de dizer afrancesados, pronunciados sabe Deus como, tal qual as crianças do Highland Brigade que a estas horas vai longe, navegando para o norte, em mares onde o sal das lágrimas lusíadas é só de pescadores, entre as vagas que os matam, ou de gente sua, gritando na praia, as linhas fê-las a companhia coats and clark, marca âncora, para da história trágico-marítima não sairmos». In José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, Lisboa, 1995, ISBN 972-21-0286-9

Cortesia de Caminho/JDACT