«O
espelho vê o homem como um ser belo e ama-o; um outro espelho vê o homem como
um ser horrendo e odeia-o; e, contudo, é sempre o mesmo ser que produz as
impressões». In Justine F. Sade
«Sim,
nós insistimos nesses pormenores, ao passo que vós preferis velá-los com um
pudor que os priva de todos os aspectos repugnantes; só resta aquilo que é útil
a quem se deseja familiarizar com o homem; não podeis imaginar a que ponto
esses quadros podem auxiliar o aperfeiçoamento do espírito humano;
possivelmente ainda somos tão cegamente respeitadores desse ramo do saber
devido à estupidez daqueles que se ocupam de tais assuntos. Habitados por
terrores absurdos, limitam-se a discutir as puerilidades que qualquer imbecil
conhece e não se atrevem a arrancar do coração humano, para exibi-las, as suas
gigantescas idiossincrasias (ibem). Tonalidades
paisagísticas: castanho-bronze, céu abrupto, solo cor-de-pérola com sombras
nacaradas e reflexos cor-de-malva. A poeirada leonina, a poeirada real do
deserto: túmulos de profeta tomando tons de zinco e cobre quando o crepúsculo
desce sobre o lago antigo. As suas imensas brechas como charcos deixados por
marés celestiais; verde e limão puxando para o metálico, para um véu singelo
cor-de-abrunho, húmido, palpitante: ninfa de asas viscosas. Taposiris
morreu aqui, entre as colunas e as balizas derrubadas, desaparecidos os
Arpoadores... Mareotis debaixo de um céu lilás escaldante. Verão: areia
amarelo-camurça, céu de mármore ardente. Outono: equimoses tumefactas. Inverno:
neve crepitante, areias geladas. Fundos de céu-claro, cintilações de mica,
verdes deslavados do delta, sumptuosos painéis de estrelas.
E a Primavera? Ah! Não há
Primavera no Delta, nenhum sentimento de renovação, de rejuvenescimento das
coisas. Saímos do Inverno para nos sentirmos imediatamente mergulhados na
efígie de cera quente de um Verão sufocante. Mas aqui, pelo menos, em
Alexandria, as brisas marinhas salvam-nos da acabrunhante estagnação do Estio,
infiltrando-se na barra entre os navios de guerra e vindo soprar docemente os
toldos raiados dos cafés da Grande Corniche. Eu nunca teria... A cidade semi-imaginada
(e contudo bem real), começa e acaba em nós, lança raízes nos recantos da nossa
memória. Porque será que sou obrigado a voltar lá todas as noites, escrevendo
junto do fogo da alfarrobeira, enquanto o vento do Egeu se lança contra a casa
abraçando-a violentamente antes de ir vergar em arco a espinha dos ciprestes da
ilha? Já não falei bastante de Alexandria? Vou deixar-me contaminar de novo
pelo sonho dessa cidade e pela recordação dos seus habitantes? Sonhos que eu
cria ter depositado em lugar seguro lançando-os ao papel, confiando-os ao
segredo das casas fortes da memória! Pensareis que me delicio com estas
evocações. Mas não é assim. Foi uma simples intervenção do acaso que tornou a
levantar o problema obrigando-me a refazer o caminho percorrido. Uma recordação
que se vê num espelho. Justine, Melissa, Clea... Éramos tão poucos que na
verdade um livro devia ser suficiente para esgotar-nos. Eu também acreditei que
assim fosse. Agora dispersos pelo tempo e pelas circunstâncias, quebrado para
sempre o circuito...
Empreendi
a tarefa de tentar fazê-las reviver nas palavras, de reintegrá-las na memória,
de assinalar a cada uma e a cada um a sua posição no meu próprio tempo.
Egoisticamente. E terminado o manuscrito, senti que tinha fechado à chave a
casa de bonecas dos nossos actos. Na verdade eu via as minhas amantes e amigos
não mais como seres humanos e vivos mas como criações coloridas da minha mente;
eram agora habitantes do meu livro, não da cidade, como figuras de tapeçaria.
Era difícil conceder-lhes outra realidade além da dos vocábulos que eu utilizara
para descrevê-los. Que me fez portanto
reconsiderar? Mas para progredir tenho que retroceder: não que tenha
escrito alguma falsidade a respeito dos meus conhecimentos de Alexandria, longe
disso. Contudo, quando escrevi, não dispunha de todos os factos. O quadro que
desenhei era provisório, como o painel de uma civilização perdida deduzido de
uns escassos fragmentos de vasos, uma tábua com caracteres confusos, um
amuleto, alguns ossos humanos, e uma máscara mortuária de ouro, sorridente. Nós vivemos escreve algures
Pursewarden, vidas baseadas sobre uma
selecção de ficções. A nossa perspectiva da realidade é condicionada pela nossa
posição no espaço e no tempo, e não pela nossa personalidade como geralmente se
crê. Assim, cada interpretação da realidade se baseia sobre uma posição única.
Dois passos para leste ou para oeste e o quadro muda inteiramente. Ou
qualquer coisa parecida...
Quanto
aos personagens, reais ou inventados, são animais que não existem. Cada psique
é na realidade um formigueiro de predisposições contraditórias. A personalidade
como algo dotado de atributos físicos é uma ilusão, mas uma ilusão necessária
se queremos amar! Quanto a essa qualquer coisa que permanece constante..., o
beijo tímido de Melissa, por exemplo (ingénuo como um primitivo processo de
impressão), ou o franzir dos sobrolhos de Justine lançando uma sombra sobre os
negros olhos refulgentes, órbitas da Esfinge na torreira do dia. Afinal de contas, diz Pursewarden, tudo o que se disser de qualquer pessoa
poderá ser verdade. O Santo e o Canalha partilham a realidade. E tem razão!»
In
Lawrence Durrell, Quarteto de Alexandria, Baltazar, tradução de Daniel
Gonçalves, Editora Ulisseia, Lisboa, 1960/1961, ISBN 972-568-497-4.
Cortesia
de Ulisseia/JDACT