A fundação da comunidade dos cónegos regrantes
de Santa Cruz. 28 de Junho de 1131
«A cristandade sempre fervilhou de
movimentos reformistas. O carácter hierárquico da Igreja e a definição
dogmática dos principais fundamentos da fé não impediram que muitos baptizados,
quer clérigos, quer leigos, propusessem reinterpretações, veiculassem novas
ideias e experimentassem novas práticas, muitas das vezes em conflito com a hierarquia.
Em todas as épocas, a passagem do tempo ia tornando certas tradições desajustadas
e estimulava a emergência de novas dinâmicas, em particular entre as instituições
de vida comunitária. A Igreja viveu, e vive, permanentemente nesta tensão entre
tradicionalistas e reformistas, e foi a sua capacidade para se modificar a passos
lentos que lhe permitiu sobreviver à passagem dos séculos e a tornou na
instituição mais antiga do mundo. No início do século XII, as comunidades de cónegos
que seguiam a regra de Santo Agostinho eram populares e constituíam um movimento
de renovação da vida espiritual do clero. Telo, arcediago de Coimbra, tentou criar
uma dessas comunidades na sua cidade, a partir de 1128. Contou com o apoio de duas
personalidades de vulto: João Peculiar, então mestre-escola da catedral conimbricense,
e Teotónio, ao tempo prior da Sé.
Estes clérigos conseguiram arrair
o jovem Afonso Henriques para a sua causa; o infante apoiou-os e concedeu-lhes terrenos
junto às muralhas de Coimbra. A 28 de Junho de 1131 foi lançada a primeira pedra para a edificação da nova igreja
e do novo espaço comunitário; as obras decorreram num bom ritmo, o que permitiu
que a comunidade passasse a viver ai a partir de 24 de Fevereiro de 1132, sob a chefia de Teotónio. Os cónegos
de Santa Cruz tinham particular atenção à celebração litúrgica e à sua visualização
(perfeita) pelos crentes. Beneficiando da proteção do infante, prestes a tornar-se
rei, o mosteiro desenvolveu-se e transformou-se rapidamente no primeiro guardião
da memória colectiva portuguesa. Os seus chefes eram eclesiásticos perspicazes e
determinados, e a congregação ganhou a proteção papal por bula de 26 de Maio
de 1135.
A 10 de Junho de 1136, João Peculiar foi eleito bispo do
Porto, e dois anos depois sucedeu a Paio Mendes na sé de Braga; este prelado foi
um dos principais esteios internacionais da causa portucalense e um aliado leal
de Afonso Henriques. Telo morreu a 9 de Setembro de 1136, mas Teotónio, por sua vez, permaneceu à frente de Santa Cruz,
recusando convites para subir à dignidade episcopal. Morreu em 1162 e foi canonizado logo no ano
seguinte. Um bispo político e um santo
súbito foram assim duas pedras angulares desta instituição, cuja existência
se confunde com a própria causa independentista dos portucalenses, e cujos registos
escritos deixados pelos seus membros constituem fonte preciosa para o
conhecimento do século XII português.
A relação íntima de Santa Cruz
com o rei fundador foi rematada com a escolha da sua igreja para ser a última morada
do monarca e, passados oito séculos, Santa Cruz e Afonso Henriques continuam juntos».
In
João Paulo Oliveira Costa, Episódios da Monarquia Portuguesa, Círculo de
Leitores, Temas e Debates, 2013, ISBN 978-989-644-248-4.
Cortesia
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