sábado, 25 de julho de 2015

O Ano da Morte de Ricardo Reis. José Saramago. «… desde o Hamlet que nós andávamos a dizer, O resto é silêncio, afinal, do resto quem se encarrega é o génio, e se este, também outro qualquer…»

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«Trabalhar com nobreza, esperar com sinceridade, enternecer-se com o homem, esta é a verdadeira filosofia». In Fernando Pessoa

«(…) O senhor doutor não vem almoçar, mas disse que jantaria, se quiser deixar algum recado, eu pessoalmente me encarregarei de lho transmitir, quem ousará duvidar agora da palavra de um gerente de hotel, excelente fisionomista e definidor de identidades. Mas, para que não fiquemos somente com a palavra de alguém que conhecemos tão pouco, aqui está estoutro jornal que pôs a notícia na página certa, a da necrologia, e extensamente identifica o falecido, Realizou-se ontem o funeral do senhor doutor Fernando António Nogueira Pessoa, solteiro, de quarenta e sete anos de idade, quarenta e sete, notem bem, natural de Lisboa, formado em Letras pela Universidade de Inglaterra, escritor e poeta muito conhecido no meio literário, sobre o ataúde foram depostos ramos de flores naturais, o pior é delas, coitadas, mais depressa murcham. Enquanto espera o eléctrico que o há-de levar aos Prazeres, o doutor Ricardo Reis lê a oração fúnebre proferida à beira da campa, lê-a perto do lugar onde foi enforcado, sabemo-lo nós, vai para duzentos e vinte e três anos, reinava ao tempo o senhor João V, que não teve lugar na Mensagem, estávamos dizendo, onde foi enforcado um genovês vendilhão que por causa duma peça de droguete matou um português dos nossos, dando-lhe com uma faca pela garganta, e depois fez o mesmo à ama do morto, que morta ali ficou do golpe, e a um criado deu duas facadas não fatais, e a outro vazou-lhe um olho como a coelho, e se mais não aviou foi porque enfim o prenderam, aqui vindo a ser sentenciado por ser perto a casa do assassinado, com grande concorrência de povo, não se lhe pode comparar esta manhã de mil novecentos e trinta e cinco, mês de Dezembro, dia trinta, estando carregado o céu, só quem o não pôde evitar anda na rua, embora não chova neste preciso instante em que Ricardo Reis, encostado a um candeeiro no alto da Calçada do Combro, lê a oração fúnebre, não do genovês, que a não teve, salvo se lhe fizeram as vezes os doestos da populaça, mas de Fernando Pessoa, poeta, de crimes de morte inocente, Duas palavras sobre o seu trânsito mortal, para ele chegam duas palavras, ou nenhuma, preferível fora o silêncio, o silêncio que já o envolve a ele e a nós, que é da estatura do seu espírito, com ele está bem o que está perto de Deus, mas também não deviam, nem podiam os que foram pares com ele no convívio da sua Beleza, vê-lo descer à terra, ou antes, subir as linhas definitivas da Eternidade, sem enunciar o protesto calmo, mas humano, da raiva que nos fica da sua partida, não podiam os seus companheiros de Orfeu, antes os seus irmãos, do mesmo sangue ideal da sua beleza, não podiam, repito, deixá-lo aqui, na terra extrema, sem ao menos terem desfolhado sobre a sua morte gentil o lírio branco do seu silêncio e da sua dor, lastimamos o homem, que a morte nos rouba, e com ele a perda do prodígio do seu convívio e da graça da sua presença humana, somente o homem, é duro dizê-lo, pois que ao seu espírito e seu poder criador, a esses deu-lhes o destino uma estranha formosura, que não morre, o resto é com o génio de Fernando Pessoa. Vá lá, vá lá, felizmente que ainda se encontram excepções nas regularidades da vida, desde o Hamlet que nós andávamos a dizer, O resto é silêncio, afinal, do resto quem se encarrega é o génio, e se este, também outro qualquer». In José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, Lisboa, 1995, ISBN 972-21-0286-9

Cortesia de Caminho/JDACT