«Trabalhar com nobreza, esperar com sinceridade, enternecer-se com o
homem, esta é a verdadeira filosofia». In Fernando Pessoa
«(…) O senhor doutor não vem almoçar, mas disse que jantaria, se quiser
deixar algum recado, eu pessoalmente me encarregarei de lho transmitir, quem
ousará duvidar agora da palavra de um gerente de hotel, excelente fisionomista
e definidor de identidades. Mas, para que não fiquemos somente com a palavra de
alguém que conhecemos tão pouco, aqui está estoutro jornal que pôs a notícia na
página certa, a da necrologia, e extensamente identifica o falecido,
Realizou-se ontem o funeral do senhor doutor Fernando António Nogueira
Pessoa, solteiro, de quarenta e sete anos de idade, quarenta e sete, notem
bem, natural de Lisboa, formado em Letras pela Universidade de Inglaterra,
escritor e poeta muito conhecido no meio literário, sobre o ataúde foram
depostos ramos de flores naturais, o pior é delas, coitadas, mais depressa murcham.
Enquanto espera o eléctrico que o há-de levar aos Prazeres, o doutor Ricardo
Reis lê a oração fúnebre proferida à beira da campa, lê-a perto do lugar onde
foi enforcado, sabemo-lo nós, vai para duzentos e vinte e três anos, reinava ao
tempo o senhor João V, que não teve lugar na Mensagem, estávamos dizendo, onde
foi enforcado um genovês vendilhão que por causa duma peça de droguete matou um
português dos nossos, dando-lhe com uma faca pela garganta, e depois fez o
mesmo à ama do morto, que morta ali ficou do golpe, e a um criado deu duas
facadas não fatais, e a outro vazou-lhe um olho como a coelho, e se mais não
aviou foi porque enfim o prenderam, aqui vindo a ser sentenciado por ser perto a
casa do assassinado, com grande concorrência de povo, não se lhe pode comparar
esta manhã de mil novecentos e trinta e cinco, mês de Dezembro, dia trinta,
estando carregado o céu, só quem o não pôde evitar anda na rua, embora não
chova neste preciso instante em que Ricardo Reis, encostado a um candeeiro no
alto da Calçada do Combro, lê a oração fúnebre, não do genovês, que a não teve,
salvo se lhe fizeram as vezes os doestos da populaça, mas de Fernando Pessoa,
poeta, de crimes de morte inocente, Duas palavras sobre o seu trânsito mortal,
para ele chegam duas palavras, ou nenhuma, preferível fora o silêncio, o
silêncio que já o envolve a ele e a nós, que é da estatura do seu espírito, com
ele está bem o que está perto de Deus, mas também não deviam, nem podiam os que
foram pares com ele no convívio da sua Beleza, vê-lo descer à terra, ou antes,
subir as linhas definitivas da Eternidade, sem enunciar o protesto calmo, mas
humano, da raiva que nos fica da sua partida, não podiam os seus companheiros
de Orfeu, antes os seus irmãos, do mesmo sangue ideal da sua beleza, não
podiam, repito, deixá-lo aqui, na terra extrema, sem ao menos terem desfolhado
sobre a sua morte gentil o lírio branco do seu silêncio e da sua dor,
lastimamos o homem, que a morte nos rouba, e com ele a perda do prodígio do seu
convívio e da graça da sua presença humana, somente o homem, é duro dizê-lo,
pois que ao seu espírito e seu poder criador, a esses deu-lhes o destino uma
estranha formosura, que não morre, o resto é com o génio de Fernando Pessoa. Vá
lá, vá lá, felizmente que ainda se encontram excepções nas regularidades da
vida, desde o Hamlet que nós andávamos a dizer, O resto é silêncio, afinal, do resto
quem se encarrega é o génio, e se este, também outro qualquer». In
José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, Lisboa, 1995,
ISBN 972-21-0286-9
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