quinta-feira, 9 de julho de 2015

O Escriba. A. M. Dean. «O homem parou de protestar. Estava acostumado a ser repreendido, pelo que o olhar furioso de Simon não o perturbava. Para além disso, havia qualquer coisa de diferente no companheiro. O homem feroz, que nunca vira estremecer..»

jdact

Hays Mews, Londres
«(…) Os ruídos continuaram, fazendo fugir as memórias de infância. Convencido de que Emily estava bem escondida, a sua motivação alterou-se. Fechá-los dentro de casa e esperar que tudo corresse pelo melhor não fazia parte da sua natureza, e livrar a casa dos intrusos transformou-se em prioridade. Percorreu a divisão com o olhar, procurando qualquer coisa que pudesse brandir como arma. Os castiçais da lareira eram demasiado pequenos para intimidar quem quer que fosse, e tão-pouco serviam como ameaça real caso a intimidação não resultasse. O candeeiro de esquina era difícil de manobrar e pesado. E foi então que no canto oposto viu a solução. Deus te abençoe, Em. Embora nunca tivesse jogado, a paixão de Emily pelo golfe transformou-se de súbito numa das suas maiores virtudes: o bem abastecido saco de tacos encontrava-se encostado a um canto. Implicara com ela tantas vezes por causa do seu amor pelo desporto. Quando corresse com os intrusos de casa, teria de lhe pedir desculpa. Andrew avançou pé ante pé até ao saco e extraiu um pesado taco de madeira; em seguida dirigiu-se silenciosamente para o corredor central. A cada passo, o som de vozes abafadas e o restolhar de papéis tornava-se mais audível e mais próximo.
No gabinete de Emily Wess, um dos homens estacou subitamente. Com os dedos metidos ainda no meio de uma pilha de pastas e documentos, perguntou-se se seria verdade. A dúvida não durou muito. Sabia o que tinha nas mãos: sucesso. Simon sempre fora um homem prático, todavia, em momentos como aquele, não podia evitar que a emoção exigisse uma parcela igual da sua atenção. Afinal, o esforço e a dedicação à causa possuíam um objectivo espiritual, e Simon sempre albergara um lado espiritual. Naquele momento, nada podia ofuscar o significado daquilo que estava ali para reclamar. Era a maior tarefa que alguma vez empreendera e seria certamente uma das maiores proezas da sua vida. Encontrei. A palavra foi pronunciada como um suspiro. Apesar da sensação de êxito, não era de índole a permitir que o espanto triunfasse sobre a sua atenção às circunstâncias. O casal estaria certamente a dormir algures naquela casa, por isso, nada de conversa.
Ao mesmo tempo que o outro homem se voltava para ele, Simon retirou a pasta almofadada da pilha existente no interior da gaveta. Segundos depois já se encontrava aberta e contemplavam ambos o seu precioso conteúdo: uma solitária e antiga folha de papel acastanhado e engelhado pelo tempo. Tens a certeza? O segundo homem examinou a folha, desconcertado pela inscrição antiga que cobria a superfície. Era desconfiado por natureza, uma característica que diversas vezes o ajudara ao longo da sua difícil vida; e, naquele instante, a sua incredulidade nata parecia justificar-se. Não parece um mapa. O primeiro homem analisou o documento até ao mais ínfimo pormenor. O companheiro tinha razão: não parecia um mapa. Contudo, a letra manuscrita era familiar, condizendo na perfeição com a caligrafia do Livro, o antigo diário que lhes servia de infalível guia desde sempre. Tenho a certeza absoluta. Ainda assim, o outro homem não estava convencido. Não entendo como vai isso levar o Arthur até à chave de pedra. Se regressassem para junto do líder sem o mapa verdadeiro, as repercussões seriam severas. Simon fitou-o com uma expressão de súbito implacável. A sua vontade era esmurrá-lo por aquele imperdoável desrespeito, mas naquele momento encontrava-se mais preocupado com o ruído que até uma reprimenda sussurrada poderia gerar. Já tinham falado o suficiente. Lançou ao companheiro um olhar encolerizado. O homem parou de protestar. Estava acostumado a ser repreendido, pelo que o olhar furioso de Simon não o perturbava. Para além disso, havia qualquer coisa de diferente no companheiro. O homem feroz, que nunca vira estremecer, por mais terríveis que fossem as circunstâncias, tremia de excitação. Os olhos quase brilhavam na escuridão da casa.
Andrew Wess avançou mais alguns passos pelo corredor, parando por fim junto à porta do escritório de Emily. Lá dentro, o som de alguém a revolver as gavetas havia sido suplantado por murmúrios e pelo arrastar de pés, e mais recentemente pelo silêncio. Ao aproximar-se, o medo que Andrew sentia deu lugar à raiva. Ouvira falar do aumento do número de assaltos em Londres e imaginava um par de adolescentes rufiões no interior da pequena divisão, embriagados ou sob o efeito de drogas e agindo com base no princípio de que tudo o que desejavam na vida podia ser roubado. Pouco importavam os danos ou a insegurança e o medo que podiam incutir aos outros. Esse pensamento enfurecia-o. Na sua terra, no Ohio, pegavam nesse tipo de vândalos e tinham com eles uma pequena conversa atrás de um barracão. Não fazia ideia de qual era o método utilizado em Londres, mas não ia deixá-los devassar assim livremente as suas vidas. Encostado à parede, a fúria levou-o a agir. Respirando fundo e mobilizando toda a sua coragem, girou para a esquerda e atravessou-se na moldura da porta. Foi um erro, que a sua falta de experiência e de maturidade não permitiram avaliar.
Que diabo fazem nesta casa!, vociferou e, com a mão esquerda, ergueu bem alto o taco, cuja cabeça revestida a titânio quase tocava no tecto. O facto de os intrusos não serem adolescentes ébrios foi algo que registou em menos de um segundo. A surpresa ao ver dois homens altos e fortes debruçados sobre a secretária foi suplantada pelo choque ao escutar dois disparos rápidos, que ecoaram no silêncio da noite mesmo antes de a última palavra ter saído da sua boca. O homem mais perto dele sacara da pistola com extraordinária rapidez e disparara sem hesitar. Andrew Wess caiu no chão já sem vida; o seu coração fora atravessado por duas balas». In A. M. Dean, O Escriba, tradução de Dina Antunes, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-204-5.

Cortesia CAutor/JDACT