O sangue, o vento, a guerra e outras circunstâncias
«(…) Muito mais nos importava a sua antiguidade, ou melhor, quase a sua
velhice, pois já estava em decadência e tudo nela havia adquirido manias de velho,
as portas e as janelas, cada uma abria e fechava a seu modo, respondia-nos
gemente ou queixosa, às vezes casmurra, outras ronceira: tinham vida, as portas
e as janelas, as grandes tábuas rangentes e trémulas dos sobrados: mereciam
chamar-se com um nome cristão, ou pelo menos próprio. Se alguma tinha ficado
aberta, porta ou janela, e o vento lhe batia de noite, não era preciso percorrê-las
a todas, de tantas que eram, até a encontrarmos, pois reconhecia-se pelo seu
guinchar ou pelo seu bater. É preciso fechar a janela da cozinha, por exemplo,
ou a porta do galinheiro, ou a do espigueiro. Sabíamos também, pelo ranger das
tábuas dos sobrados, quais eram as que se aguentavam firmes e quais as que
começavam a ceder, é melhor não pisar muito por aí, cuidado que estão podres,
as vigas; e, se alguém andava por elas, sabíamos quem era e por onde andava,
por remotos que soassem os seus passos. A casa era, antes de mais, som,
todo um mundo sonoro: enchia os espaços e dava-lhes forma, marcava distâncias e
até limites, o que está para lá do que soa não nos pertence, ou pertence-nos de
outro modo, o bater da água contra o engenho do moinho ou as salvas de mar e terra
comemorando o santo do rei. Eram também sons vivos, com amor e com drama, às
vezes, e outras cómicos, melodramaticamente cómicos, como naquela ocasião em
que nos despertou um estrondo, sabe Deus que horas seriam, toda a gente dormia;
e percorremos a casa, as mulheres novas com luzes, atrás; percorremo-la toda,
recanto a recanto, Obdúlia à frente, com uma tranca de ferro para bater em quem
aparecesse, corpo ou espírito, e nada. E, quando já tínhamos voltado para os
nossos quartos e explorávamos, medrosos, os espaços mudos, então, no silêncio,
repetiu-se o ruído, maior ainda, com o acrescento pavoroso de vidros partidos,
não pode ser um fantasma, que os fantasmas andam com mais cautela, leva-os o
vento, empurra-os a brisa, move-os o ar que entra por qualquer greta, quando muito
produzem um ligeiro roçagar; e toca a percorrer de novo a casa, janela a
janela, todas inteiras.
Acontecera que o S. José francês da minha avó, a litografia colorida da
sua cabeceira, tinha caído em dois tempos, e no segundo partira-se o vidro. A
minha avó rezava a meio da noite. Viu-nos chegar, armados de tranca de ferro e
palmatórias. Quando descobrimos a causa, chamou-nos loucos. Da mesma maneira
reconhecíamos o vento, do vento terei que falar também com certo vagar, se
vinha do mar ou do monte, e que orifício da casa ou que racha das telhas tinha
escolhido como flauta de Pã ou apito de capador. Às vezes, nas páginas que tenho
escritas e publicadas, ponho em cena (quando vem ao caso) um vento forte que
soa, música sem pauta, um pouco louca, nas frinchas de uma casa; pois, em todas
elas, é a recordação do vento de Serantes que sugere a imagem ou que a suporta,
do mesmo modo que me serviu de termo de referência quando me vi metido em
vendavais tão ruidosos e furiosos como aqueles. Os que desciam das neves do
Canadá, pela bacia do Hudson! E, certa vez em que descrevi o cataclismo de milhares
de cavalos montados por um único cavaleiro, era este vento que me vinha à
memória. Descia pelo vale, desde La Bailadora, ou entrava pelo mar: ai, este era
o que escurecia a face das águas e amarelava a crista das vagas!
Estou a vê-lo e a ouvi-lo, menino com medo e espanto, por trás das
vidraças, naquele Inverno em que vivemos junto ao mar, um pouco abaixo da casa
da avó: o caminho passava sob as nossas janelas, e do outro lado quebravam-se
as ondas cruzando-o de espuma! Com um bramar de eucaliptos, que ali estavam, os
primeiros do vale, já antigos, corpulentos, e, aguentando as suas raízes
intermináveis, um pedaço de terra que o mar podia levar consigo. Em frente das
minhas janelas, mais acima, na casa da avó, o que bramia eram os ramos da
nogueira. Temíamos que uma noite daquelas o vento nos levasse o telhado, mas,
como vêem, morreram todos os da casa, morreu Pura, a última, que parecia
imortal, tinha noventa e seis anos quando morreu, e as telhas permaneciam.
Cheguei a pensar que tudo naquela casa tinha sido chamado a perdurar, as mulheres,
as telhas, as recordações. A nogueira, em compensação, derrubaram-na, e não foi
o vento, que não teria podido dar conta do seu tronco, mas sim a cobiça e os
machados. Disseram que aquele ramo que atravessava o caminho, e vinham as suas
folhas lamber as vidraças da minha janela, estorvava a passagem dos altos camiões.
E quem lhes mandava a eles serem tão altos?!
Por baixo daquele ramo, por si só como uma grande árvore e um grande dossel,
passaram os enterros da minha aldeia, os primeiros automóveis, as turbamultas
da revolução. Na nogueira faziam o seu ninho os pássaros, da nogueira nos
vinha, ao alvorecer, a sua algazarra, e dos lados da nogueira, não sei se dos seus
ramos, me chegou a voz do rouxinol, da primeira vez que ouvi o seu canto.
Raiava a madrugada, e alguém me acordou, talvez Obdúlia, que se preocupava muito
com as minbas experiências líricas. Escuta
esse pássaro que canta. É o rouxinol. Não é o pintassilgo? Não, é o rouxinol, repara bem, e fixa-o.
Tornei a ouvi-lo pela última vez não há muito, nesta mesma Primavera em que
escrevo, a do ano de 82». In Gonzalo Torrente Ballester, O Sangue, O
Vento, A Guerra, e outras Histórias, Contos, Editorial Caminho, Uma Terra Sem
Amos, Lisboa, 1994, ISBN 972-21-0979-0.
Cortesia de Caminho/JDACT