«Na aldeia onde nasci, os rochedos
têm nome. Há o Navio, a Cabeça do Urso, a Emboscada, o Muro, e ainda os Gémeos,
também conhecidos pelos Seios do Vampiro.
Há sobretudo a Pedra dos Soldados; era aí que outrora se postavam os vigias, quando
as tropas perseguiam os revoltosos; nenhum local é mais venerado, mais cheio de
lendas. No entanto, quando me acontece rever em sonhos a paisagem da minha infância,
é um outro rochedo que me aparece. Com o aspecto de um trono majestoso, cavado e
como que puído no local do assento, com um espaldar alto e direito que baixa de
ambos os lados à laia de braços, é o único, creio eu, que tem nome de homem, o Rochedo de Tanios. Durante muito tempo
contemplei este trono de pedra sem ousar aproximar-me. Não era o medo do
perigo; na aldeia os rochedos eram o nosso campo de jogos favorito e, mesmo
quando era criança, eu tinha o hábito de desafiar os mais velhos nas escaladas mais
perigosas; não tínhamos mais equipamento do que as nossas mãos e pernas nuas,
mas a nossa pele sabia colar-se à pele da pedra e não havia colosso que
resistisse. Não, não era o medo de cair que me retinha. Era uma crença, e era um
juramento. Exigido pelo meu avô, alguns meses antes da sua morte. Todos os rochedos, mas nunca esse!. Os outros
rapazes mantinham-se, tal como eu, à distância, com o mesmo temor
supersticioso. Também eles deviam ter prometido, com a mão no buço do bigode. E
obtido a mesma explicação: chamavam-lhe
Tanios-kichk; tinha vindo sentar-se no rochedo; nunca mais voltou a ser visto.
Muitas vezes tinha sido evocado diante
de mim esse personagem, herói de tantas historietas locais, e o seu nome sempre
me intrigou. Tanios, se bem compreendia, era uma das numerosas variantes locais
de António, em vez de Antoun, Antonios, Mtanios, Tanos ou Tannous... Mas
porquê esse ridículo apelido de kichk?
Isso, o meu avô não me quis revelar. Disse apenas aquilo que considerava que podia
dizer a uma criança: Tanios é o filho de Lamia.
Por certo ouviste falar dela. Passou-se há muito tempo. Mesmo eu não tinha nascido,
nem sequer o meu próprio pai. Nessa época o paxá do Egipto fazia guerra aos Otomanos,
e os nossos antepassados sofreram. Sobretudo depois da morte do patriarca. Abateram-no
exactamente ali, à entrada da aldeia, com a espingarda do cônsul de Inglaterra...
Era assim que falava o meu avô quando não queria responder-me, lançando pedaços
de frases como se indicasse um caminho, depois outro, ainda um terceiro, sem no
entanto se encaminhar para nenhum. Foi-me preciso esperar anos antes de descobrir
a verdadeira história. No entanto eu segurava a melhor ponta do fio, uma vez que
conhecia o nome da Lamia. Todos nós o conhecemos, na aldeia, graças a um ditado
que, por sorte, atravessou dois séculos para chegar até nós: Lamia, Lamia, como é que poderias esconder a
tua beleza!
Por isso, ainda na nossa época,
quando os jovens agrupados na praça da aldeia vêem passar alguma mulher enrolada
num xaile, há sempre um que murmura: Lamia,
Lamia... O que muitas vezes é um autêntico cumprimento, mas pode também revelar
a mais cruel zombaria. A maior parte desses jovens não sabem grande coisa de Lamia,
nem do drama de que o ditado conservou a memória. Contentam-se em repetir o que
ouviram da boca dos pais ou dos avós, e por vezes, tal como eles, acompanham as
palavras com gesto da mão na direcção da parte alta da aldeia, hoje desabitada,
onde se avistam as ruínas ainda imponentes de um castelo. Por causa desse gesto,
que tantas vezes foi reproduzido diante de mim, durante muito tempo imaginei
Lamia como uma espécie de princesa que, por detrás desses altos muros, escondia
a sua beleza dos olhares dos aldeões. Pobre Lamia, se eu tivesse podido vê-la, atarefada
nas cozinhas, ou correr de pés descalços através dos córregos, com um cântaro na
mão e um lenço na cabeça, dificilmente teria podido confundi-la com a castelã.
Também
não era criada. Hoje sei um pouco mais sobre ela. Graças, primeiro que tudo, aos
velhos da aldeia, homens e mulheres, que questionei incansavelmente. Foi há uns
vinte ou mais anos, todos eles morreram, com excepção de um. O seu nome é
Gébrayel, é primo de meu pai e tem hoje noventa e seis anos. Se menciono o seu nome,
não foi apenas porque ele teve o privilégio de sobreviver, é porque o testemunho
desse antigo professor, apaixonado pela história local, foi o mais precioso de todos;
na verdade, insubstituível. Ficava horas a olhá-lo, tinha umas narinas enormes e
lábios largos, por baixo de um crânio pequeno e rugoso, traços que a idade por certo
agravou. Não voltei a vê-lo ultimamente, mas asseguram-me que continua a ter esse
tom de confidência, esse mesmo relato ardente, e uma memória intacta. Através das
palavras que me preparo para escrever, é muitas vezes a sua voz que se deve escutar.
Devo a Gébrayel o ter adquirido muito cedo a convicção íntima de que Tanios,
para além do mito, tinha sido na realidade um ser vivo. As provas vieram mais tarde,
muitos anos mais tarde. Quando, com a ajuda da sorte, pude por fim lançar a mão
a autênticos documentos». In Amin Maalouf, O Rochedo de Tanios, 1993,
tradução de Maria Sarmento, Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-885-6.
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