segunda-feira, 20 de julho de 2015

A Primeira Mestiça. Álvaro Vargas Llosa. «Não é preciso termos sido confidentes de Francisca para sentirmos o palpitar do seu coração e compreendermos o muito que se passa no sei íntimo enquanto, por fora, iam sucedendo os factos relatados…»

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O cerco a Lima
«Jauja nasceu entre guanacos (também conhecido por lama), raposas e vicunhas (também conhecido por vigonho, taruca ou taruga) e morreu entre as pernas da princesa virgem Inés Huaylas precisamente no dia em que Francisco Pizarro descobriu a ternura. Tinham passado apenas oito meses entre a fundação de Jauja, em Abril de 1534, com as celebrações de pompa e circunstância que Manco II organizara em honra dos novos senhores do império, e o nascimento da mestiça. Quando a filha abriu caminho para sair das entranhas da princesa inca Inés Huaylas, já o Conquistador tinha decidido transladar a capital para a orla costeira, numa viagem de sentido contrário à da expedição que o levara, a passo de vencedor, da espuma do Pacífico até aos cumes andinos do Cuzco. Antes de partir para o litoral como objectivo de determinar a localização exacta do novo eixo político do país, foi surpreendido, bem como os seus lugares-tenentes, pela constatação de que na sua alma guerreira havia lugar para a humanidade. A sua mestiça era muito mais do que a prova da sua estada em Tahuantinsuyo. Na verdade, representava o seu encontro outonal com um exército para si até então desconhecido, o qual não usava cavalos, arcabuzes, fundas ou flechas. Era o exército dos seus próprios sentimentos. Acabara por ceder perante esta força, ainda que não sem resistência.
O estratega não se esquecia de que os focos de resistência índia permaneciam muito activos; que, a norte, alguns compatriotas ávidos de última hora ameaçavam os confins da província sob o seu governo; nem que ainda estava por fixar o local exacto da nova capital. No entanto, por alguns dias, o geómetra da Conquista do Peru entendeu que gerar uma raça era uma façanha mais extraordinária do que fundar uma cidade, pelo que se entregou aos festejos do nascimento da criatura sem lhes regatear um instante da sua boa disposição. Participou em torneios, à espanhola, e bebeu chicha de milho, como os índios, enquanto os espíritos de uns e de outros eram assaltados pelo pressentimento de que os vagidos daquela doce amostra de gente tornariam a guerra ainda mais confusa do que as alianças de certas facções locais com os invasores, que tinham por objectivo o acerto de contas pendentes com os Incas. De que forma é que o espírito de Pizarro, fugazmente enternecido com a paternidade, seria afectado pela consciência de que, dali por diante, o inimigo passava a incluir a mãe da sua filha? E os vencidos? Entenderiam como uma segunda derrota, como uma garantia ou sobretudo como uma espécie de vingança cósmica o facto de o seu conquistador, o carrasco de Atahualpa, partilhar a sua descendência com a irmã do inca morto?
Nem uns nem outros expressaram publicamente estas dúvidas, pois as danças e os torneios encheram de festa o vale serrano de Jauja naqueles derradeiros dias de 1534. Uma minúscula expedição, enviada para a orla costeira, pouco tempo antes, por Pizarro, explorava os arredores de Pachacamac, em busca do local ideal para a nova capital política do império. Jauja despedia-se da sua honra efémera de cidade capital misturando para sempre o sangue das partes inimigas. Tal como acontece com algumas espécies zoológicas, que morrem ao dar a vida à descendência, também Jauja entregou a sua quando outra vida nasceu. Depois de baptizar a sua mestiça, cujas madrinhas foram Isabel, a Conquistadora, Beatriz, a Mourisca e Francisca Pinelo, soldaderas lendárias nestas suas terras adoptivas, Pizarro partiu para o litoral com o intuito de transladar a capital. Um esquecimento providencial do cabido tinha-lhe facilitado a tarefa, pois os habitantes de Jauja acreditavam que as terras frias e estéreis da montanha os impossibilitariam de criar os seus porcos, aves e cavalos, pelo que apoiaram efusivamente a transladação para junto do mar. Inés Huaylas e Francisca, a recém-nascida, permaneceram na cidade enquanto Pizarro resolvia os assuntos de Estado a partir do santuário indígena de Pachacamac, muito perto de Lima. O Conquistador visitara o lugar anteriormente e tinha outorgado ao seu irmão Hernando a numerosa comenda de Chincha. Despachou três homens com a missão de encontrar o local perfeito para o seu objectivo, pois queria fixar o seu centro político antes de os rivais se lhe adiantarem, estabelecendo uma testa-de-praia no litoral. Temia, sobretudo, Pedro Alvarado, que desembarcara a norte com a intenção de tomar de assalto o território governado por ele, cujos limites estavam ainda por fixar de forma definitiva. As novas de que Diego Almagro, seu antigo companheiro de muitas batalhas, se tinha juntado a Alvarado e que ambos avançavam em direcção a Pachacamac, vindos do Norte, aumentavam a sua inquietação. Nesse tempo, em que as hierarquias e a lealdade eram de barro, nem o grande arquitecto da Conquista tinha os foros garantidos. Almagro e Alvarado chegaram, por fim, a Pachacamac. E não, não iam mancomunados. Depois de o felicitar pelo nascimento da filha, Almagro informou-o de que tinha convencido Alvarado a abandonar o Peru. Sebastián Benalcázar tinha-se adiantado ao ávido estremenho na tomada de Quito, e Alvarado decidira vender a sua frota e os serviços dos seus homens a Pizarro». In Álvaro Vargas Llosa, A Primeira Mestiça, 2004, tradução de Luís Coutinho, Saída de Emergência, 2013, ISBN 978-989-637-503-4.

Cortesia de SEmergência/JDACT