«Se fosse possível, uma vez dissipado
o sonho, recuperar o senso comum, a coisa não teria grande importância…, é a história
dos desvarios mentais. Todos a conhecem e ninguém se molesta. Mas, ai, às vezes
a coisa é levada demasiado longe. Que seria, atrevemo-nos a pensar, que seria a
realização da ideia se a sua forma puramente abstracta nos abalou tão profundamente?
O delírio maldito está vivificado e a sua existência é um crime». In D.
A. F. de Sade
«Na sua qualidade de aspirante
excepcionalrnente prometedor tinham-no mandado por um ano para o Egipto a fim de
aperfeiçoar os conhecimentos da língua árabe, adido à Alta Comissão como uma
espécie de escriba enquanto esperava a nomeação para um primeiro lugar diplomático;
mas conduzia-se já como qualquer jovem secretário perfeitamente integrado e
consciente das responsabilidades que o esperavam. Simplesmente, nesse dia era um
pouco mais difícil conservar a reserva habitual, tão excitado se encontrava com
a pescaria. De facto não se importava nada com o vinco das calças de flanela
nem com o facto de a água que se infiltrava no fundo da canoa lhe manchar os sapatos
de lona branca. Era como se no Egipto pormenores desta natureza fossem sistematicamente
negligenciados. Abençoava a sorte que lhe proporcionara numa carta de apresentação
para os Hosnani, para essa velha casa misteriosa erguida no meio de uma rede de
lagos e canais não longe de Alexandria. Sim.
A canoa de fundo chato que o
levava agora, avançando lentamente sobre as águas túrbidas, voltava para leste a
fim de tomar posição no vasto semicírculo de embarcações que se fechava progressivamente
no espaço delimitado pelas balizas das redes. E ao aproximarem-se, a noite egípcia
começou a cair: todos os objetos tomaram subitamente aparência de baixos-relevos
sobre um fundo de ouro e púrpura. A terra adensava-se como uma tapeçaria no crepúsculo
lilás, estremecendo aqui e além em revérberos que se reflectiam no nevoeiro ascendente,
horizontes que se expandiam e contraíam, como se o mundo se espelhasse sobre
uma bola de sabão prestes a desfazer-se. As vozes soavam, umas vezes mais
graves, outras mais doces e claras, à flor da água. O eco da própria tosse prolongou-se
sobre o lago como um bater de asas. Apesar de ser quase noite, a temperatura
mantinha-se elevada e a camisa colava-se-lhe às costas. Os raios de sombra que avançavam
para eles mal recortavam os perfis das ilhotas franjadas de canaviais, pontuando
a superfície das águas como grandes cabeças de alfinetes, como patas, com maciços
de vegetação.
Lentamente, num passo de
procissão, o grande arco das embarcações ia-se fechando, mas com a terra e a água
a liquefazerem-se simultaneamente ele tinha mais a impressão de viajar através do
céu do que nas águas aluviais do Mareotis. Ouvia o chapinhar de invisíveis
gansos, e às vezes num recanto do horizonte a água e o céu separavam-se quando levantava
voo uma esquadrilha de patos, arrastando as patas à superfície do lago, como
flutuadores de hidroaviões grasnando estupidamente. Mountolive suspirou e
pôs-se a contemplar a água que lhe corria aos pés, o queixo entre as mãos. Estava
pouco habituado a sentir-se tão feliz. A juventude é a idade dos desesperos.
Atrás dele ouvia o mais novo dos dois
irmãos, Narouz, o que tinha o lábio leporino, gemer de cada vez que a vara, impelindo
a embarcação para diante, lhe repercutia nos rins o impulso da canoa. A lama do
fundo, grossa como melaço, salpicava a esteira com um baque surdo, enquanto a vara
se afundava voluptuosamente na vasa. Era belo e malcheiroso; contudo, com
grande surpresa, sentiu-se deliciado com os odores pútridos do estuário. Rajadas
de vento, vindas do mar, fustigavam-nos de vez em quando refrescando-lhes a mente.
Nuvens de mosquitos evoluíam como uma chuva de prata nos reflexos do sol
moribundo. A teia de aranha de transição de luz inflamou-lhe o espírito. Narouz,
sinto-me muito feliz, disse ele escutando as pancadas regulares do coração. O adolescente
soltou uma risadinha silvante e tímida, baixando a cabeça: Bem, bem. Mas isto não
é nada. Estamos a chegar. Mountolive sorriu. O Egipto, pensou, como se recordasse
o nome de uma mulher, o Egipto.
Para além, disse Narouz na sua voz
rouca e melodiosa, os patos não são rusés.
O seu inglês era imperfeito e hesitante. São fáceis de apanhar. Mergulha-se por
baixo deles e agarramo-los pelas patas. Mais fácil do que abatê-los a tiro. Se quiser
podemos voltar amanhã. Gemeu novamente e apoiou-se à vara com todo o seu peso, soltando
um gemido. E as serpentes?, perguntou Mountolive. Nessa tarde tinha avistado algumas,
bem grandes, deslizando lentamente nas águas. Narouz meteu a cabeça entre os ombros
possantes e desatou a rir. Não há serpentes, disse; e pôs-se de novo a rir. Mountolive
voltou-se para descansar a face no rebordo da amurada. Pelo canto de um olho avistava
o companheiro, manobrando avara, e observava-lhe os braços e as mãos cabeludas,
as pernas robustas. Posso substituí-lo agora?, perguntou em árabe. Já tinha notado
que os seus hospedeiros ficavam radiantes quando se lhes dirigia na língua
nativa. As respostas que lhe davam eram afectuosas como um abraço. Quer? De maneira
nenhuma, disse Narouz soltando o seu feio sorriso que uns olhos magníficos e uma
voz de profundas tonalidades redimiam. O suor escorria-lhe das madeixas negras.
E a fim de evitar que a recusa fosse considerada indelicada, acrescentou: A batida
começa ao cair da noite. Eu sei o que é preciso fazer; a si compete descobrir os
peixes». In Lawrence Durrell, O Quarteto de Alexandria, Mountolive, 1958,
Publicações dom Quixote, tradução de Daniel Gonçalves, 2012, ISBN
978-972-205-110-1.
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