quarta-feira, 15 de julho de 2015

Mountolive. O Quarteto de Alexandria. Lawrence Durrell. «O eco da própria tosse prolongou-se sobre o lago como um bater de asas. Apesar de ser quase noite, a temperatura mantinha-se elevada e a camisa colava-se-lhe às costas»

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«Se fosse possível, uma vez dissipado o sonho, recuperar o senso comum, a coisa não teria grande importância…, é a história dos desvarios mentais. Todos a conhecem e ninguém se molesta. Mas, ai, às vezes a coisa é levada demasiado longe. Que seria, atrevemo-nos a pensar, que seria a realização da ideia se a sua forma puramente abstracta nos abalou tão profundamente? O delírio maldito está vivificado e a sua existência é um crime». In D. A. F. de Sade

«Na sua qualidade de aspirante excepcionalrnente prometedor tinham-no mandado por um ano para o Egipto a fim de aperfeiçoar os conhecimentos da língua árabe, adido à Alta Comissão como uma espécie de escriba enquanto esperava a nomeação para um primeiro lugar diplomático; mas conduzia-se já como qualquer jovem secretário perfeitamente integrado e consciente das responsabilidades que o esperavam. Simplesmente, nesse dia era um pouco mais difícil conservar a reserva habitual, tão excitado se encontrava com a pescaria. De facto não se importava nada com o vinco das calças de flanela nem com o facto de a água que se infiltrava no fundo da canoa lhe manchar os sapatos de lona branca. Era como se no Egipto pormenores desta natureza fossem sistematicamente negligenciados. Abençoava a sorte que lhe proporcionara numa carta de apresentação para os Hosnani, para essa velha casa misteriosa erguida no meio de uma rede de lagos e canais não longe de Alexandria. Sim.
A canoa de fundo chato que o levava agora, avançando lentamente sobre as águas túrbidas, voltava para leste a fim de tomar posição no vasto semicírculo de embarcações que se fechava progressivamente no espaço delimitado pelas balizas das redes. E ao aproximarem-se, a noite egípcia começou a cair: todos os objetos tomaram subitamente aparência de baixos-relevos sobre um fundo de ouro e púrpura. A terra adensava-se como uma tapeçaria no crepúsculo lilás, estremecendo aqui e além em revérberos que se reflectiam no nevoeiro ascendente, horizontes que se expandiam e contraíam, como se o mundo se espelhasse sobre uma bola de sabão prestes a desfazer-se. As vozes soavam, umas vezes mais graves, outras mais doces e claras, à flor da água. O eco da própria tosse prolongou-se sobre o lago como um bater de asas. Apesar de ser quase noite, a temperatura mantinha-se elevada e a camisa colava-se-lhe às costas. Os raios de sombra que avançavam para eles mal recortavam os perfis das ilhotas franjadas de canaviais, pontuando a superfície das águas como grandes cabeças de alfinetes, como patas, com maciços de vegetação.
Lentamente, num passo de procissão, o grande arco das embarcações ia-se fechando, mas com a terra e a água a liquefazerem-se simultaneamente ele tinha mais a impressão de viajar através do céu do que nas águas aluviais do Mareotis. Ouvia o chapinhar de invisíveis gansos, e às vezes num recanto do horizonte a água e o céu separavam-se quando levantava voo uma esquadrilha de patos, arrastando as patas à superfície do lago, como flutuadores de hidroaviões grasnando estupidamente. Mountolive suspirou e pôs-se a contemplar a água que lhe corria aos pés, o queixo entre as mãos. Estava pouco habituado a sentir-se tão feliz. A juventude é a idade dos desesperos.
Atrás dele ouvia o mais novo dos dois irmãos, Narouz, o que tinha o lábio leporino, gemer de cada vez que a vara, impelindo a embarcação para diante, lhe repercutia nos rins o impulso da canoa. A lama do fundo, grossa como melaço, salpicava a esteira com um baque surdo, enquanto a vara se afundava voluptuosamente na vasa. Era belo e malcheiroso; contudo, com grande surpresa, sentiu-se deliciado com os odores pútridos do estuário. Rajadas de vento, vindas do mar, fustigavam-nos de vez em quando refrescando-lhes a mente. Nuvens de mosquitos evoluíam como uma chuva de prata nos reflexos do sol moribundo. A teia de aranha de transição de luz inflamou-lhe o espírito. Narouz, sinto-me muito feliz, disse ele escutando as pancadas regulares do coração. O adolescente soltou uma risadinha silvante e tímida, baixando a cabeça: Bem, bem. Mas isto não é nada. Estamos a chegar. Mountolive sorriu. O Egipto, pensou, como se recordasse o nome de uma mulher, o Egipto.
Para além, disse Narouz na sua voz rouca e melodiosa, os patos não são rusés. O seu inglês era imperfeito e hesitante. São fáceis de apanhar. Mergulha-se por baixo deles e agarramo-los pelas patas. Mais fácil do que abatê-los a tiro. Se quiser podemos voltar amanhã. Gemeu novamente e apoiou-se à vara com todo o seu peso, soltando um gemido. E as serpentes?, perguntou Mountolive. Nessa tarde tinha avistado algumas, bem grandes, deslizando lentamente nas águas. Narouz meteu a cabeça entre os ombros possantes e desatou a rir. Não há serpentes, disse; e pôs-se de novo a rir. Mountolive voltou-se para descansar a face no rebordo da amurada. Pelo canto de um olho avistava o companheiro, manobrando avara, e observava-lhe os braços e as mãos cabeludas, as pernas robustas. Posso substituí-lo agora?, perguntou em árabe. Já tinha notado que os seus hospedeiros ficavam radiantes quando se lhes dirigia na língua nativa. As respostas que lhe davam eram afectuosas como um abraço. Quer? De maneira nenhuma, disse Narouz soltando o seu feio sorriso que uns olhos magníficos e uma voz de profundas tonalidades redimiam. O suor escorria-lhe das madeixas negras. E a fim de evitar que a recusa fosse considerada indelicada, acrescentou: A batida começa ao cair da noite. Eu sei o que é preciso fazer; a si compete descobrir os peixes». In Lawrence Durrell, O Quarteto de Alexandria, Mountolive, 1958, Publicações dom Quixote, tradução de Daniel Gonçalves, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.

Cortesia PdQuixote/JDACT