Traição
e Bluff
«Nos começos de Junho de 1502, César Bórgia dava em Roma os retoques
finais nos seus planos de invasão, com os seus comandantes já reunidos no terreno:
Lorqua em Cesena, Vitellozzo e Baglioni perto da Romagna sudoeste, junto à fronteira
com a Toscana. Tal como Maquiavel previra, assistira-se a um aumento da tensão entre
os franceses e os espanhóis por causa da decisão de tomarem Nápoles em conjunto.
Luís XII tinha grande necessidade do apoio de Bórgia, sob a forma do poder diplomático
do papa e do potencial apoio de Bórgia e dos seus comandantes. Bórgia estava decidido
a tirar partido disso, em especial no que se referia a Florença, onde os gastos
com a guerra aparentemente interminável contra Pisa e o crescente fardo fiscal
imposto pela Signoria às cidades da república tinham provocado uma agitação generalizada.
Então, a 4 de Junho, a cidade florentina de Arezzo, no Sul da Toscana, revoltou-se,
com os seus cidadãos a afluir às ruas e a apelar abertamente ao regresso dos Medici.
Como preparativo para a campanha de Bórgia, o seu comandante Vitellozzo encontrava-se
com uma força de 3500 homens do outro lado da fronteira. Aproveitando a oportunidade,
Vitellozzo avançou para Arezzo, onde os cidadãos lhe abriram os portões de par em
par e saudaram a sua entrada na cidade. Não se sabe até que ponto tudo isto foi
encenado por Vitellozzo, com o conhecimento prévio de Bórgia. No entanto, a velocidade
dos acontecimentos, assim como o oportunismo rapidamente concretizado de Vitellozzo,
decerto apanhou Bórgia de surpresa. Se ele tivesse o controlo pleno dos acontecimentos,
talvez este avanço se tivesse dado quando produzisse o máximo de efeito possível,
ou seja, quando Bórgia tivesse já saído de Roma e desencadeado a sua invasão da
parte sul da Romagna. Assim, ocorreu ainda antes de Bórgia sair de Roma. Depois,
chegou até ele a notícia de que Piero del Medici se encontrava em Arezzo, acompanhado
pelo comandante de Bórgia Baglioni, enquanto Vitellozzo avançava para ocidente,
para o Val di Chiana, sem encontrar quase nenhuma resistência por parte das cidades
que foi cruzando pelo caminho. Os acontecimentos avançavam rapidamente, mas sob
o controlo de quem? Vitellozzo estava empenhado em vingar-se dos florentinos por
causa do assassínio (como ele o via)
do irmão Paolo, após a sua traição no cerco de Pisa, três anos antes. De facto,
quando Bórgia negou qualquer envolvimento na invasão de Vitellozzo, insistiu em
que esta teria sido de certeza a única razão para a acção do seu comandante.
No dia 10 de Junho, Bórgia saiu
tarde de Roma, com os seus outros comandantes, Liverotto Fermo, Paolo e Giulio Orsini,
e 7000 homens. Encaminharam-se para norte pela Via Flaminia, a antiga estrada
romana que conduzia à Romagna, com o objectivo aparente de tomarem Camerino e depois
continuarem na direcção da costa para conquistarem Sinigallia. Como gesto de cortesia,
Bórgia informou previamente Guidobaldo, duque de Urbino, pedindo-lhe autorização
para atravessar o seu território, ao mesmo tempo que Vitellozzo solicitava a Guidobaldo
que enviasse 1000 dos seus soldados para o ajudar na conquista do Val di Chiana.
De início apreensivo com as movimentações de tropas de Bórgia tão perto do seu território,
ao saber que Bórgia e as suas forças tinham inflectido para leste, saindo da Via
Flaminia em direcção a Camerino, Guidobaldo enviou as suas saudações a César e,
no dia 20 de Junho, saiu de Urbino para participar num jantar de festa com os
seus amigos numa zona campestre próxima. Os gentis acordes da música dos alaúdes
sob as estrelas foram de repente interrompidos pela chegada de uma série de mensageiros
sem fôlego. O ataque de César a Camerino tinha sido apenas uma manobra para
desviar as atenções. As suas tropas surgiram do nada e naquele momento avançavam
em direcção a sul a partir de San Marino, a leste da costa, e para norte a partir
da via Flaminia, convergindo todas para a cidade de Urbino, onde se esperava
que chegassem pela manhã.
Guidobaldo
fugiu o mais rápido que o seu cavalo conseguia transportá-lo, procurando segurança
nas montanhas. Os dias que se seguiram passou-os a tentar desesperadamente iludir
as patrulhas que Bórgia mandara à sua procura: escolhendo um trajecto em ziguezague
pelos trilhos da fronteira dos altos Apeninos, dependendo da hospitalidade que encontrava
em casas isoladas de camponeses, aventurando-se por fim a descer ao vale do Pó.
Oito dias mais tarde, depois de ter percorrido quase 320 quilómetros, alcançou
a segurança da cidade de Mântua, governada pela família da esposa, tendo chegado
num estado de grande perturbação depois de ter fugido apenas com a minha vida e
com o gibão e a camisa que tinha no corpo». In Paul Strathern, O Artista, o
Filósofo e o Guerreiro, Da Vinci, Maquiavel e Bórgia e o Mundo que eles
Criaram, Clube do Autor, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-724-010-2.
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do CAutor/JDACT