«Este volume narra a história de
umas bodas de sangue, legitimadas por um razoável contrato de agregação, seguido,
ao longo de sessenta anos, por frequentes episódios de violência doméstica. O contrato
de agregação, aprovado pelas Cortes de Tomar, garantia formalmente a Portugal a
continuidade das suas instituições, das suas leis gerais, mas retirava-lhe a independência,
proporcionada por um rei nacional. A política,
a paz e a guerra passaram a ser traçadas em Madrid. E o contrato de agregação não
era entre parceiros iguais. Basta um apontamento para que não restem dúvidas. Os
titulares de Castela dialogavam com o rei de chapéu na cabeça, mas os duques de
Bragança, de Aveiro, os titulares e fidalgos portugueses tinham de tirar o
chapéu ou o barrete. A agregação dos Estados e territórios da Península sob a coroa
dos Filipes não seguiu um ideal de união de iguais nem assentava num sentimento
dominante de identidade hispânica. Materializava a ambição de juntar mais território,
mais soldados, mais riqueza para manter e ampliar a posição dominante e prosseguir
a cruzada utópica de restabelecer, sobre a Europa luterana e calvinista, a monarquia
universal católica e de a alargar, aos povos dos outros continentes, com as armadas
de comércio, de guerra e a pregação dos soldados de Cristo.
O direito sucessório não estava contra
Filipe II (I). Ele e dona Catarina de Bragança eram os candidatos credíveis e legítimos.
Mas Filipe, por muito que untasse as mãos de fidalgos e letrados, por mais
propaganda desenvolvida desde a tragédia de Alcácer Quibir, por mais fidalgos portugueses
que resgatasse do cativeiro de Marrocos, não conseguia tomar posse da herança. O
reino esteve sem rei durante quase meio ano e, apesar da ameaça do seu exército,
o primeiro a ser legitimado pelos procuradores remanescentes das Cortes de Santarém
e aclamado em Lisboa, como um Messias, foi o bastardo do infante Luís, António,
Prior do Crato. Filipe teve de mandar avançar o exército de 20 000
homens que reunira em Badajoz e fazer zarpar, sobre o Algarve, Setúbal e Lisboa,
a armada do marquês de Santa Cruz. Portugal reagia a ser herdado como um
palácio, uma quinta ou mesmo um senhorio. Tinha corpo e uma identidade própria.
O seu território fora definido pelo Tratado
de Alcanizes em1297. Dir-se-á que Portugal ainda não tinha identificado
as fronteiras e todos os penedos divisórios mas estavam, no essencial,
esclarecidas pelos concelhos, pelos senhorios e pelos sinais das guerras passadas.
O Estado português, então circunscrito
ao território do Condado Portucalense, proclamou-se independente na primeira metade
do século XII e expandiu-se para sul e para leste. Depois da conquista do Algarve
ao poder mouro, o seu corpo definira-se disputando o espaço a Castela e para
lá voltava os seus castelos e os cus da cachorrada das suas igrejas. E desde
o tempo do senhor rei Dinis I, isto é, desde os finais do século XIII, teve rei e governo próprios sobre todo o território
e sobre todos os poderes, incluindo o
mais poderoso, o eclesiástico. De 1448
datava também o primeiro Código Português que reunia as leis gerais do reino, as
Ordenações Afonsinas,
publicadas pelo regente infante Pedro
e seu sobrinho e genro Afonso V. Por sua vez a língua portuguesa substituíra o latim,
nos documentos oficiais e particulares, desde o governo do monarca Dinis I. E ganhava
forma na documentação pública e privada, nas Crónicas de Fernão Lopes, nos livros
do rei Duarte I e do infante Pedro, nos poetas do Cancioneiro Geral, publicado por Garcia de Resende. No século
XVI é uma língua moderna e na Ásia uma língua de comércio. Neste século, a literatura
portuguesa atingia um dos momentos mais altos da sua história e ombreava com as
literaturas europeias mais avançadas na poesia, na história, na literatura de
viagens, mesmo no teatro, na oratória e até nos romances de cavalaria. Mas a massa dos portugueses entenderia e falava
a sua própria língua? A leitura da historiografia e das narrativas
portuguesas da época resolvem a dúvida. Leia-se a Peregrinação e ver-se-á como os transmontanos, minhotos, beirões,
estremenhos, alentejanos e algarvios se entendiam nos portos da Ásia até à China
e ao Japão.
Mas não é verdade que na Corte se
falava português e castelhano e que vários autores, com particular excelência para
Gil Vicente e Francisco Manuel Melo, escreveram altamente nas duas línguas e partilham
com relevo a literatura portuguesa e castelhana? E não circulavam em Lisboa cantigas de escárnio e de amor em castelhano?
É verdade. Até se cantava
na língua árabe como documentam os Autos de Gil Vicente. Para dizer toda
a verdade, nas ruas de Lisboa viviam falantes de línguas africanas, asiáticas, americanas
e europeias. Mas na rua, mesmo na Corte e na literatura produzida por autores portugueses,
a língua materna é a dominante». In António Borges Coelho, Os Filipes, Editorial
Caminho, 2015, ISBN 978-972-212-740-0.
Cortesia Caminho/JDACT