«(…) A rainha Joana morreu como
viveu a maior parte da sua vida. Só, rodeada apenas por seus servidores, sem
aparato, mas também sem a assistência que tantas vezes fazia do falecimento de
um soberano um espectáculo mórbido. Morto, aquele corpo que tanto viajara nos
primeiros trinta anos de vida, e que tinha estado encerrado .dentro daquela
pequena vila durante quarenta e seis anos, tinha uma pequeníssima viagem pela
frente. Ia ser levado para o mosteiro de Santa Clara, que ficava a uns duzentos
passos do palácio e onde repousava o corpo de seu marido, Filipe, o Belo, a grande paixão da sua vida, e
aí ficaram os dois a aguardar o que seus descendentes decidiriam sobre a
derradeira morada do casal real.
Quem
mais teria Joana amado? Quem merecera
o afecto da pobre rainha? Os seus filhos decerto, sobretudo Catarina. a
infanta nascida com a mãe já viúva e que permanecera junto dela, mesmo na clausura
de Tordesilhas, até seu irmão a enviar para Portugal, onde ainda então era rainha.
Voltara Joana a apaixonar-se depois da
morte de Filipe? Tivera no se
seu íntimo outros amigos? Com o falecimento de Joana todos os seus
sentimentos e recordações também morriam. Vidas antigas, que haviam convivido
consigo noutros tempos apagavam-se mais um pouco, ou desapareciam de vez, com a
extinção da memória da rainha. Mas de seus amigos nada ficou registado, à
excepção do amor apaixonadíssimo por Filipe…, e talvez nada mais houvesse, de
facto, para registar. Por isso, termina aqui a História e começa o romance.
O amigo
da rainha
Procissão fúnebre terminara e o caixão
da rainha repousava nas Carmelitas. No paço, encerrava-se uma época. Alguns criados
circulavam pelo pátio exterior e o portão abriu-se, para que saíssem os soldados
que faziam a guarda da rainha e que acabavam de ser desmobilizados. No pátio interior,
duas costureiras discutiam, por causa de um lençol que não chegara a ser
inventariado. Numa das câmaras do andar superior, a velha Aldonça viu o portão a
fechar-se outra vez e suspirou com melancolia; depois foi espreitar na janela do
lado oposto, pois a discussão das costureiras descambara em gritaria. Entretanto,
ouviu Dolores a chamá-la e percorreu o corredor até este se cruzar com outro
perpendicular, cujas portas estavam abertas, proporcionando o desfrute de uma vista
bonita sobre o Douro. Virou à direita e foi até aos antigos aposentos da rainha.
Passada meia hora de relógio, as
duas camareiras continuavam a arrumar o fato da falecida. Os vestidos haviam sido
guardados em arcas; noutras tinham depositado lençóis e cobertas. A maior parte
da roupa que era acondicionada pertencera à velhinha que fora sendo esquecida pelo
mundo e que não tinha uma corte para impressionar, mas ao remexerem os
pertences de sua senhora, Aldonça e Dolores encontraram vestidos antigos que tinham
as cores garridas da época em que Joana estava no centro do poder e daí deslumbrava
a sua corte e irradiava uma força indómita». In João Paulo Oliveira Costa, Círculo
de Leitores, Temas e Debates, 2012, 978-989-644-184-5.
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