quarta-feira, 8 de julho de 2015

Os Meninos Judeus Desterrados. Orlando Piedade. «Raquel, o patriarca da dinastia Ortiz está muito zangado contigo e com Manolo também, mas ele é intocável. Estás em sarilhos; meteste todos em sarilhos. O carrancudo, a insonsa e a avó estão inocentes, mas isso em nada os iliba»

jdact

De Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493
«(…) Estás numa sociedade caracterizada, pelos extremos, no topo os nobres, detentores de toda a riqueza, e na base a plebe, sem qualquer capacidade económica e financeira. Apesar de estarem em extremidades opostas na escala social, as suas géneses conferem-lhes uma grande liberdade, de parte a parte, que possibilitam ascensão ou declínio, sem que isso signifique algo de transcendente. Não estás em nenhuma destas classes, pois não? Pois não! O grupo onde te inseres descaracteriza a sociedade dos ideais de quem manda, a nobreza, portanto. Para eles, a classe média, que é maioritariamente composta pelos conversos e judeus que ameaçam prevalecer, com o domínio do capital e o comércio das cidades, nunca deveria existir. Esta situação aguçou o engenho da nobreza, levando-os à necessidade de examinar a vossa seriedade cristã materializada no decreto papal, datado de Novembro de mil quatrocentos e setenta e oito, que instituiu a Inquisição (maldita). É a mais forte das armas usada na luta de classes para impor a ideologia daqueles que dominam uma vez que a expulsão não resolveu o problema na sua totalidade; logo, o conceito funciona com todo o seu vigor.
Não tenhas ilusões, és apenas um peão num tabuleiro extremamente emaranhado. Tempos houve em que contavam com o papel de pacificador, desempenhado pela coroa, entre as diferentes comunidades. Papel este que foi abandonado por ser mais seguro identificar-se com a classe mais poderosa como forma de garantir a própria sobrevivência. E não há melhor forma de o fazer senão adoptando o modelo imposto, bordado pelas razões de ordem espiritual, atribuindo a este a mais alta magnitude. Um modelo, Raquel!... Um modelo assente na grande flexibilidade social, onde a classe inferior se sente tão boa quanto a superior, faz com que todos se sintam parte integrante. Com isso, a exterminação das outras deixou de ser o propósito de ume única classe. O orgulho da nobreza exerce um papel fundamental na afirmação dos cristãos-velhos. Familiaridade e nivelamento significam a aceitação incondicional dos ideais impostos. Uma minoria, de que fazes parte, aparentemente insignificante, instalou o terror que urge resolver. A causa religiosa que, diga-se, encaixa tão bem, assente nos milhares de judeus que aceitaram o baptismo depois de terem sido perseguidos e massacrados, mas que continuam a seguir as leis de Moisés, atingiu a escala aterrorizadora no entender das autoridades eclesiásticas. Expulsar judeus, purificar o país e estabelecer a unidade religiosa para o serviço de Deus e, mais importante ainda, para o serviço dos reis católicos. Hum, Raquel, problema abençoado, não achas? O certificado que legitima a utilização da tão desejada arma, a Inquisição (maldita). Os pecados dos cristãos-novos estão entregues aos bispos e às cortes da sua igreja. Não os atices Raquel... Já tens corpo de mulher, mas o que, de facto, te faz falta é maturidade. Bolas! Queres fazer de mim uma velha, é?
Raquel, o patriarca da dinastia Ortiz está muito zangado contigo e com Manolo também, mas ele é intocável. Estás em sarilhos; meteste todos em sarilhos. O carrancudo, a insonsa e a avó estão inocentes, mas isso em nada os iliba. Podiam tomar providências para desarraigar o mal, mas os inocentes morrem em cima de ódio. E o impávido? O impávido está-se nas tintas! Podia ser a tua safa se Manolo não resolvesse bater o pé ao pai, mas coitado..., está enamorado! Ficou enfeitiçado com a tua beleza e a forma alegre como abordas a vida. Outra saída seria uma abordagem directa ao carrancudo, mas o patriarca Ortiz sente-se muito importante para isso, acha que existem outras formas de resolver os seus importunos. Foste denunciada por um pecado que cometes reiteradamente, Raquel, mas os teus delatores não sabem se o cometes ou não, mas é uma bela desculpa para punir a tua beleza e ousadia. Tu e os teus estão tramados porque quem vos denunciou é um Ortiz. As denúncias feitas por eles trazem invariavelmente o veredicto..., estampilha de culpa. É um pecado, Raquel, e já, foi entregue aos bispos e aos elementos da sua corte». In Orlando Piedade, Os Meninos Judeus Desterrados, De Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493, Edições Colibri, 2014, ISBN 978-989-689-450-4.

Cortesia de Colibri/JDACT