«(…) À conquista de
Ceuta se seguiram as espantosas viagens marítimas, que, no fim do século XV,
foram coroadas com o descobrimento do caminho marítimo para a Índia e do
Brasil, e com a construção de um grande Império colonial no Oriente e no
Ocidente. Eram motivos sobejos para que a
pequena casa lusitana se fosse embriagando de tantas realizações e chegasse
a adjudicar-se uma missão universal. É verdade que, nessa mesma época dos
Descobrimentos, também se ouviram muitas queixas sobre a perda dos valores tradicionais,
consequência inevitável de grandes e rápidas transformações sociais. Mas tudo
nos leva a crer que também os pessimistas não deixavam de acreditar na missão
histórica do país. A este período de ufanismo
pôs termo a aventura do rei Sebastião, que teve por consequência a perda da independência.
Mas a humilhação não tardou a reavivar o messianismo do povo português, que não
queria abandonar o seu antigo sonho e cantava
as profecias ao som das cadeias, e com a brandura deste som os ferros se tornavam
menos duros e os corações mais fortes.
Deu-se o milagre da Restauração em 1640, que a muitos parecia iniciar a
era das grandes felicidades. Mas, passados alguns anos, a recuperação da
autonomia nacional deu provas de não ser o início do Império Mundial: Portugal
perdera uma grande parte das suas colónias, e teve de contentar-se com um papel
muito modesto na cena política europeia. A frustração continuava a existir e,
com ela, as esperanças messiânicas, que adquiriram novas forças sobretudo no reinado
de João V e na época das invasões francesas. Relatá-las e comentá-las será o
assunto deste livro.
As profecias e os cartapácios dos
sebastianistas
Antes de entrar na
relação dos factos principais da história do sebastianismo, julgo valer a pena
deter-me por algum tempo nas profecias, que constituíam o baluarte da seita. O
que nos interessa sobretudo é saber como elas se originaram numa sociedade sacral, qual foi a sua função e sob que
forma entraram nas colecções sebásticas, a que António Vieira, com certo
desdém, chama cartapácios.
A profecia e a sua
exegese
Assim como os nossos
conhecimentos do passado se baseiam em documentos históricos, assim as
esperanças messiânicas se fundam em profecias. Mas existe uma diferença
fundamental: ao passo que o documento histórico é apenas a base dos nossos
conhecimentos do passado, a profecia é a base e, ao mesmo tempo, o produto das
esperanças messiânicas. Estas, na fase inicial da sua existência, são vagas e
subjectivas, necessitando de uma autoridade reconhecida que lhes possa dar o
devido crédito. A profecia torna concreto o que nelas era vago e indefinido,
abonando o que nelas poderia parecer ilusório com o prestígio de um santo ou qualquer
outro varão ilustre.
Ao homem moderno, embora
cada vez mais inclinado a acreditar em horóscopos, dias aziagos e outros
agouros, custa acreditar em profecias. É que ele vive num mundo fechado, em que ainda há lugar para a actuação misteriosa de
um Destino imanente, mas cada vez menos para o governo de um Deus pessoal, o Senhor
transcendente da História, o qual nela se revelou e não deixa de revelar-se.
Ora, a profecia é uma tentativa para penetrar nos mistérios da Divina
Providência. Ela dá um sentido, divinamente garantido, ao processo histórico e,
por conseguinte, à actividade colectiva de uma dada sociedade. A profecia é
filha de sociedades que vivem da fé num Deus que remunera as virtudes e castiga
os pecados já neste mundo; nasce e cresce em épocas ainda não reguladas por
pesquisas metódicas da Natureza, nem pelas suas aplicações técnicas. Em tais períodos
a contemplação da causa final prevalece sobre a investigação das causas
eficientes. Mas cumpre repararmos que a crença num Poder superior a todas as forças
da Natureza não chega a eliminar a Razão. Deus revelou os seus desígnios
históricos pela boca de profetas, e o intelecto humano pode perscrutá-los e,
até certo ponto, compreendê-los. Fides quaerens intellectum.
A profecia tem, por definição, um núcleo irredutível à pura
racionalidade. Digamos, embora o termo seja dos mais ambíguos, que tem um
núcleo mítico. Mas o mito é um motor poderoso de processo histórico. Leva uma
grande vantagem sobre as construções puramente racionais, porque afecta o homem
na sua totalidade, não se dirigindo apenas ao seu intelecto, mas tocando-lhe o coração,
incentivando-lhe a imaginação e motivando-lhe a vontade. A quem acredita nela,
a profecia dá uma visão do futuro, convidando o homem a colaborar com os
desígnios divinos». In José Van den Besselaar, O Sebastianismo História Sumária, Instituto
Camões, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Biblioteca Breve /Volume 110, Livraria Bertrand, 1987.
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