terça-feira, 28 de julho de 2015

O Ano da Morte de Ricardo Reis. José Saramago. «… está também, por ela guardado, o corpo apodrecido de um fazedor de versos que deixou a sua parte de loucura no mundo, é essa a grande diferença que há entre os poetas e os doidos…»

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«Trabalhar com nobreza, esperar com sinceridade, enternecer-se com o homem, esta é a verdadeira filosofia». In Fernando Pessoa

«(…) Ricardo Reis andou já metade do caminho, vai olhando à direita, eterna saudade, piedosa lembrança, aqui jaz, à memória de, iguais seriam do lado esquerdo se para lá olhássemos, anjos de asas derrubadas, lacrimosas figuras, entrelaçados dedos, pregas compostas, panos apanhados, colunas partidas, se as farão já assim os canteiros, ou as entregarão inteiras para que as quebrem depois os parentes do defunto em sinal de pesar, como quem solenemente, à morte do chefe, os escudos parte, e caveiras no sopé das cruzes, a evidência da morte é o véu com que a morte se disfarça. Passou Ricardo Reis adiante do jazigo que procurava, nenhuma voz o chamou, Pst, é aqui, e ainda há quem insista em afirmar que os mortos falam, ai deles se não tiverem uma matrícula, um nome na pedra, um número como as portas dos vivos, só para que saibamos encontrá-los valeu o trabalho de nos ensinarem a ler, imagine-se um analfabeto dos muitos que temos, era preciso trazê-lo, dizer-lhe com a nossa voz, É aqui, porventura nos olharia desconfiado, se estaríamos a enganá-lo, se por erro nosso, ou malícia, vai orar a Montecchio sendo Capuletto, a Mendes sendo Gonçalves.
São títulos de propriedade e ocupação, jazigo de dona Dionísia Seabra Pessoa, inscritos na frontaria, sob os beirais avançados desta guarita onde a sentinela, romântica sugestão, está dormindo, em baixo, à altura do gonzo inferior da porta, outro nome, não mais, Fernando Pessoa, com datas de nascimento e morte, e o vulto dourado duma urna dizendo, Estou aqui, e em voz alta Ricardo Reis repete, não sabendo que ouviu, Está aqui, é então que recomeça a chover. Veio de tão longe, do Rio de Janeiro, navegou noites e dias sobre as ondas do mar, tão próxima e distante lhe parece hoje a viagem, agora que há-de fazer, sozinho nesta rua, entre funerais habitações, de guarda-chuva aberto, horas de almoçar, ao longe ouve-se o som choco da sineta, esperava sentir, quando aqui chegasse, quando tocasse estes ferros, um abalo na alma profunda, uma dilaceração, um terramoto interior, como grandes cidades caindo silenciosamente porque lá não estamos, pórticos e torres brancas desabando, e afinal, só, e de leve, um ardor nos olhos que vindo já passou, nem tempo deu de pensar nisso e comover-se de o pensar.
Não tem mais que fazer neste sítio, o que fez nada é, dentro do jazigo está uma velha tresloucada que não pode ser deixada à solta, está também, por ela guardado, o corpo apodrecido de um fazedor de versos que deixou a sua parte de loucura no mundo, é essa a grande diferença que há entre os poetas e os doidos, o destino da loucura que os tomou. Sentiu medo ao pensar na avó Dionísia, lá dentro, no aflito neto Fernando, ela de olhos arregalados vigiando, ele desviando os seus, à procura duma frincha, dum sopro de vento, duma pequenina luz, e o mal-estar transformou-se em náusea como se o arrebatasse e sufocasse uma grande vaga marinha, ele que em catorze dias de viagem não enjoara. Então pensou, Isto deve ser de estar com o estômago vazio, e assim seria, que em toda a manhã não tinha comido. Caiu uma bátega forte, em boa altura veio, agora já Ricardo Reis terá uma razão para responder, se for perguntado, Não, não me demorei lá, é que chovia tanto. Enquanto ia subindo a rua, devagar, sentiu dissipar-se a náusea, apenas lhe ficava uma vaga dor de cabeça, talvez um vago na cabeça, como uma falta, um pedaço de cérebro a menos, a parte que me coube. À porta da administração do cemitério estava o seu informador, era manifesto, pelo luzidio dos beiços, que acabara de almoçar, onde, aqui mesmo, estendido um guardanapo sobre a secretária, a comida que trouxera de casa, ainda morna de vir embrulhada em jornais, acaso aquecida num bico de gás, lá nos fundos do arquivo, por três vezes interrompendo a mastigação para registar entradas, afinal devo ter-me demorado mais tempo do que julgava, Então achou o jazigo que queria, Achei, respondeu Ricardo Reis, e saindo o portão repetiu, Achei, estava lá. Fez um gesto na direcção da praça de táxis, tinha fome e pressa, se ainda encontraria a esta hora restaurante ou casa de pasto que lhe desse de almoço» In José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, Lisboa, 1995, ISBN 972-21-0286-9

Cortesia de Caminho/JDACT