quarta-feira, 29 de julho de 2015

O Fio do Tempo. João Paulo O. Costa. «Virara-a antes de se levantar, e a areia corria, num deslizar perpétuo. Álvaro vira-a na casa de Filipa Andrade, quando tinha quinze anos. Era o único do seu grupo de amigos que ainda não se estreara com mulheres, e certo dia decidiu inaugurar-se…»

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A ampulheta
«(…) Álvaro ergueu-se a custo, e procurou uma folha no aparador. Na ânsia de chegar ao papel derrubou uma estatueta de marfim que Vasco da Gama lhe trouxera da longínqua Calecut. Peça curiosa, aquela. Os índios afiançaram-me que é Nossa Senhora, dissera-lhe o Gama, quando o visitara, depois do regresso da jornada venturosa. Tem quatro braços, comentara Álvaro, duvidoso. Tendes razão, velho amigo. Por certo, esta é a Senhora deles, porém, não me parece que seja a nossa, a bendita mãe de Jesus Cristo, Nosso Senhor, insistira o Ataíde. Por aquelas partes os cristãos têm práticas diferentes das da nossa Cristandade, respondera o navegador, com visível hesitacão. Será que são mesmo cristãos, senhor almirante?, inquirira o velho, com uma ponta de malícia.
Incomodado, Vasco da Gama insistira: Têm de ser..., el-rei deseja muito. E não seguem a Lei de Mafoma. Álvaro não insistira com o Gama, que, ao tempo, era adulado por toda a corte. Fora amigo de infância do avô e gostava do rapaz, contudo, parecia-lhe que a cristandade da Índia era coisa duvidosa. Já o dissera a el-rei Manuel I, mas o monarca sorrira-lhe, pedira-lhe que não se preocupasse com tais matérias e lembrara-lhe que esperava os seus novos versos para os festejos do seu casamento com a infanta dona Maria. A armada de Pedro Álvares Gouveia já estaria, por certo, em Calecut, e o caso seria esclarecido aquando do seu regresso, se tudo corresse bem. Álvaro suspirou, como fazia amiúde nos últimos meses sempre que se lembrava da poderosa armada que Manuel I despachara para a Índia no mês de Março, receoso de não ver a chegada do Gouveia. Conhecia bem o fidalgo, cujo avô, Fernando Álvares Cabral, vira tombar, ferido de morte pelos mouros, enquanto defendia o infante Henrique na desastrosa jornada de Tânger.
Reergueu a estatueta e voltou para a mesa, tão depressa quanto o corpo lhe permitia. Faltava-lhe o velho Tobias, o único escravo que tivera e que morrera há dois anos; não comprara outro por pensar que já não viveria muito tempo, todavia, agora, estava arrependido; o criado que o servia era distraído e petulante. Quando se sentou, notou que a folha ganhara um vinco; noutros tempos, teria pedido a Tobias que lhe fosse buscar outra, mas como o corpo lhe pesava e o criado como que se esfumara, conformou-se com o sinal de desleixo, que o carmelita, por certo, não levaria a mal. Preparava-se para mergulhar a pena no tinteiro, mas interrompeu o gesto para admirar os raios de sol que faiscavam por entre as ameias das torres das Portas de Santa Catarina; momentaneamente distraído, esqueceu a escrita urgente enquanto os seus olhos pousavam sobre a ampulheta. Virara-a antes de se levantar, e a areia corria, num deslizar perpétuo.
Álvaro vira-a na casa de Filipa Andrade, quando tinha quinze anos. Era o único do seu grupo de amigos que ainda não se estreara com mulheres, e certo dia decidiu inaugurar-se com essa Filipa. Corria voz que recebia bem a troco de umas moedas, e Tristão Coutinho afiançou-lhe que era mulher de bom corpo e paciente com os novatos. Pouco mais velha que eles, a vida encarregara-se de a tornar experiente. Álvaro bateu à porta, e uma cara lindíssima espreitou, sorrindo convidativamente, mas com sobranceria. Deslumbrado, Álvaro balbuciou as suas intenções, mostrando discretamente as três moedas que juntara nos últimos dias. Filipa abriu a porta. Quando ficaram a sós, estendeu a mão e ele depositou-lhe as moedas, sentindo por um breve instante a suavidade da sua pele. Olhando-o sedutoramente, Filipa puxou por dois cordões do seu vestido, ficando nua à sua frente. Ele corou, de boca aberta, e começou a libertar-se das suas roupas, rasgando as calças devido à precipitação. Quando se preparava para investir sobre o corpo nu, Filipa travou-o e mostrou-lhe a ampulheta. Ergueu o estranho objecto, rodopiou-o e assentou-o com estrondo sobre a mesa. Cabrito, serei tua até que a areia pare de cair. As tuas moedas não valem mais». In João Paulo O. Costa, O Fio do Tempo, 2009, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2011, ISBN 978-989-644-135-7.

Cortesia CL/TDebates/JDACT