A
ampulheta
«(…) Álvaro ergueu-se a custo, e
procurou uma folha no aparador. Na ânsia de chegar ao papel derrubou uma
estatueta de marfim que Vasco da Gama lhe trouxera da longínqua Calecut. Peça
curiosa, aquela. Os índios afiançaram-me que é Nossa Senhora, dissera-lhe o
Gama, quando o visitara, depois do regresso da jornada venturosa. Tem quatro
braços, comentara Álvaro, duvidoso. Tendes razão, velho amigo. Por certo, esta
é a Senhora deles, porém, não me parece que seja a nossa, a bendita mãe de
Jesus Cristo, Nosso Senhor, insistira o Ataíde. Por aquelas partes os cristãos
têm práticas diferentes das da nossa Cristandade, respondera o navegador, com
visível hesitacão. Será que são mesmo cristãos, senhor almirante?, inquirira o
velho, com uma ponta de malícia.
Incomodado, Vasco da Gama
insistira: Têm de ser..., el-rei deseja muito. E não seguem a Lei de Mafoma.
Álvaro não insistira com o Gama, que, ao tempo, era adulado por toda a corte.
Fora amigo de infância do avô e gostava do rapaz, contudo, parecia-lhe que a
cristandade da Índia era coisa duvidosa. Já o dissera a el-rei Manuel I, mas o
monarca sorrira-lhe, pedira-lhe que não se preocupasse com tais matérias e
lembrara-lhe que esperava os seus novos versos para os festejos do seu
casamento com a infanta dona Maria. A armada de Pedro Álvares Gouveia já
estaria, por certo, em Calecut, e o caso seria esclarecido aquando do seu
regresso, se tudo corresse bem. Álvaro suspirou, como fazia amiúde nos últimos
meses sempre que se lembrava da poderosa armada que Manuel I despachara para a
Índia no mês de Março, receoso de não ver a chegada do Gouveia. Conhecia bem o
fidalgo, cujo avô, Fernando Álvares Cabral, vira tombar, ferido de morte pelos
mouros, enquanto defendia o infante Henrique na desastrosa jornada de Tânger.
Reergueu a estatueta e voltou
para a mesa, tão depressa quanto o corpo lhe permitia. Faltava-lhe o velho
Tobias, o único escravo que tivera e que morrera há dois anos; não comprara outro
por pensar que já não viveria muito tempo, todavia, agora, estava arrependido; o
criado que o servia era distraído e petulante. Quando se sentou, notou que a
folha ganhara um vinco; noutros tempos, teria pedido a Tobias que lhe fosse
buscar outra, mas como o corpo lhe pesava e o criado como que se esfumara, conformou-se
com o sinal de desleixo, que o carmelita, por certo, não levaria a mal.
Preparava-se para mergulhar a pena no tinteiro, mas interrompeu o gesto para
admirar os raios de sol que faiscavam por entre as ameias das torres das Portas
de Santa Catarina; momentaneamente distraído, esqueceu a escrita urgente enquanto
os seus olhos pousavam sobre a ampulheta. Virara-a antes de se levantar, e a
areia corria, num deslizar perpétuo.
Álvaro
vira-a na casa de Filipa Andrade, quando tinha quinze anos. Era o único do seu
grupo de amigos que ainda não se estreara com mulheres, e certo dia decidiu
inaugurar-se com essa Filipa. Corria voz que recebia bem a troco de umas
moedas, e Tristão Coutinho afiançou-lhe que era mulher de bom corpo e paciente
com os novatos. Pouco mais velha que eles, a vida encarregara-se de a tornar
experiente. Álvaro bateu à porta, e uma cara lindíssima espreitou, sorrindo convidativamente,
mas com sobranceria. Deslumbrado, Álvaro balbuciou as suas intenções, mostrando
discretamente as três moedas que juntara nos últimos dias. Filipa abriu a porta.
Quando ficaram a sós, estendeu a mão e ele depositou-lhe as moedas, sentindo
por um breve instante a suavidade da sua pele. Olhando-o sedutoramente, Filipa
puxou por dois cordões do seu vestido, ficando nua à sua frente. Ele corou, de
boca aberta, e começou a libertar-se das suas roupas, rasgando as calças devido
à precipitação. Quando se preparava para investir sobre o corpo nu, Filipa travou-o
e mostrou-lhe a ampulheta. Ergueu o estranho objecto, rodopiou-o e assentou-o com
estrondo sobre a mesa. Cabrito, serei tua até que a areia pare de cair. As tuas
moedas não valem mais». In João Paulo O. Costa, O Fio do Tempo,
2009, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2011, ISBN 978-989-644-135-7.
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