De
Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493
«(…) A punição está a começar e o
vosso destino está traçado. Tu já és uma mulherzinha, por isso seguirás o mesmo
caminho delineado para os teus pais e a tua avó. Uma longa tortura que
terminará na fogueira. A fogueira da Inquisição (maldita). Não questiones
os métodos, Raquel. O objectivo é arrancar os demónios que consomem as vossas
almas e depois purificá-las através das chamas, antes de se apresentarem diante
de Deus. Ah, não te esqueças: eles estão ao serviço de Deus. Quanto ao teu
irmão Javier, muito provavelmente será entregue às ordens religiosas para fazerem
dele um cristão exemplar. Os comissários do Santo Ofício (maldito) estão a
irromper pela vossa casa adentro. Vai! Agarra o Javier pelo braço e
escondam-se. Tu conheces muito bem o caminho e foste ensinada que este túnel e
as suas ramificações constituem a última esperança. Não, não, não e não,
Raquel. Não fiques nas imediações a espreitar. Não sejas teimosa!
Segue sozinho Javier, usa a tua
inocência como arma de defesa. Apreendeste o caminho e as regras ensinadas pela
tua avó, aplica-as na perfeição, miúdo. Sabes o percurso de olhos fechados,
então não hesites. Nada disso, não vais temer os monstros dos teus sonhos, eles
não vão invadir os becos escuros nem te lançarão em pânico. Pensa nos anjos e
vai até ao fim, tal como te ensinaram. Vai! E tu Raquel, satisfeita? Acabaste
de ver os teus pais e a tua avó serem brutalmente assassinados. Percebeste o
subterfúgio? Todas as lengalengas do teu pai eram para dar tempo, a ti e ao teu
irmão, para fugirem. Isso enfureceu-os, mas, seja como for, ele nunca iria
denunciar o vosso paradeiro. Claro! Eles parecem pouco lúcidos e agora
prosseguem no vosso encalço revirando a casa. Sem qualquer clarividência, é verdade,
mas Raquel eles não vão ficar por aqui. Ainda vais a tempo de fugir e te
juntares ao teu irmão. Ele precisa de ti. Não percas tempo em lamúrias.
Estás
a ver? Agora passaram ao saque, estão a rapar tudo o que é facilmente
transportável. Estás a imaginar como é que tudo isso vai acabar, não estás?
Estava-se mesmo a ver! Para terminar lançaram fogo à vossa casa. Podias estar
longe neste momento, mas foste reimosa e agora é demasiado tarde... Num sopro
de horror tudo se extinguiu através das chamas. É difícil aplaudir um milagre
no meio da tragédia, mas parabéns Javier! Regras são regras e devem ser
cumpridas. A tua avó sente-se orgulhosa porque as suas palavras, pelo menos
para ti, não foram em vão. A qualquer momento
terão a necessidade de fazer o percurso sem a minha companhia. É sinal de que
chegou o momento... Quando chegar o momento, terão de ser rápidos e silenciosos
para não serem derrotados... Ninguém pode saber da existência desse túnel e
muito menos de que vocês estão a ser preparados para isso... Sair por uma
passagem secreta, arrastar-se ao longo de vários metros numa escuridão
absoluta, de mãos dadas, até atingir uma gruta do outro lado do quintal
completamente disfarçado no meio de árvores, arbustos e capins é algo que a tua
tenra idade não te permitiu entender». In Orlando Piedade, Os Meninos Judeus
Desterrados, De Portugal para S. Tomé e Príncipe por
ordem d’el-rei João II em 1493, Edições Colibri, 2014, ISBN 978-989-689-450-4.
Cortesia
de Colibri/JDACT